23 maio 2012

INVENTÁRIO: A SOMBRA DA ESCRITA

Por Cecília Prada

Estou sentada aqui, na margem deste caderno – não está me vendo? Essa senhora estafada, língua de fora, veio correndo, coitada, pelos prados (e desfiladeiros) literários. Ela se deixa cair à margem da estrada.

Desacorçoada (que é palavra antiga, de avó, com gosto de cará, caroço e batata-doce.)

A mão em pala no sobrolho, procuro divisar o que vim reunindo nestas páginas, entre suspiros, miçangas, grades, arrebóis e sonhos – bem vividos ou desfeitos. O material que escolhi dentre as pilhas de pastas, cadernos, arquivos de computador – de mim, minhas histórias, pedaços.

O que tenho nas gavetas da escrivaninha da memória e do Ser, mais de mil páginas assombradas que farão dentro de alguns anos o desespero das arrumadeiras. Ou o júbilo de algum possível descendente interessado em fósseis literários, avós que gastavam o tempo em escoimar lembranças e fazer rabiscos.

- Deixa eu ter perguntar: de-sa-cor-ço-a-da (risos) por quê?

- Ham. Quanto mais se escreve, mais se pode ver o que não se escreveu. A sombra da escrita, os fantasmas que se esgueiram pelos vãos da escada, desvãos, dejetos, resíduos que depois...

- Direto aos fatos. Não se embrome em palavras.

- A intensidade. Não os fatos. Não se trata de relatar mais fatos. Mas sim de empapá-los com seu verdadeiro molho. Digo, por exemplo, quero dizer: da condição da mulher da minha geração extrair um detalhe que me faz pensar – a absoluta falta de exemplos de mulheres profissionais bem sucedidas, na minha infância.

Visito, na penumbra da memória, cenas da infância, lugares públicos, eventos – detecto neles, com a mesma estranheza de outros tempos, que eram cenas de convívio entre homens, só. Visitem-se as fotos que todas as famílias guardam, em álbuns poeirentos...minha cidade, São Paulo, que já era “o maior centro industrial da América do Sul” naqueles anos 1940, como se assemelhava então a esses ambientes urbanos de países ainda bem atrasados, muçulmanos, onde a ausência da mulher está ostensivamente exposta – ainda.

Lá, eles ainda decapitam, apedrejam, enforcam mulheres, enquanto, entornando canecões de cerveja, governantes de outros países sacodem os ombros dizendo “não temos nada que ver com isso, cada povo tem seus costumes, é uma questão de soberania nacional”...

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