06 julho 2011

O MUNDO VISTO ATRAVÉS DO PRISMA DE UM LUSTRE

O MUNDO VISTO ATRAVÉS DO PRISMA DE UM LUSTRE

Por Cecília Prada

Hoje preciso escrever sobre minha padroeira, Cecília Meireles, para lembrar que neste ano ela faria 110 anos (1901-1964). Que bela mulher, que bela escritora - que belo espírito. Consagrada dos dois lados do Atlântico desde os anos 1930 - no Brasil e em Portugal, reconhecida como "um dos maiores expoentes da poesia lírica em língua portuguesa".

No trabalho profissional como no círculo íntimo dos amigos e da família, foi uma pessoa querida, serena. Mas não que a vida lhe tivesse sido fácil. Pelo contrário, foi marcada sempre pela tragédia - ela não conheceu o pai, morto aos 26 anos, três meses antes do seu nascimento. Aos três anos perdeu também a mãe. Foi acolhida e criada pela única parenta que tinha, a avó materna Jacinta Garcia Benevides, senhora culta, de origem açoriana, que lhe "cantava rimances e ensinava parlendas"- assim embalada na tradição galáico-portuguesa desde o berço, fundamentava-se no seu espírito a música essencial da poesia lírica que seria seu principal instrumento.

Na idade adulta, sofreu duas perdas terríveis - a dessa avó, e a do seu primeiro marido, o artista plástico português Fernando Correia Dias, que se suicidou , devido a uma profunda depressão, em 1935 - deixando Cecília com três filhas pequenas. Reconheceria a poeta que a intimidade precoce com a morte lhe permitira "aprender docemente essas relações entre o Eterrno e o Efêmero que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência". O tema da fugacidade da vida, o barroco ubi sunt de conteúdo melancólico, quevedesco, é dominante em sua obra, fazendo-a ver o mundo, a princípio, como "...vaga e inábil aparência,/ que se perde nas lápides escritas, / sem qualquer consistência ou consequência".

Guardava, porém, no seu íntimo, como tesouro, lembranças multicoloridas de uma infância que apesar de tudo lhe parecera "mágica", e da qual diria, em uma entrevista a Manchete :“Tudo quanto naquele tempo vi, ouvi, toquei, senti, perdura em mim com uma intensidade poética inextinguível....céus estrelados, tempestades, chuva nas flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas, negros, aleijados, bichos, suínos, realejos, cores de tapete, bacia de anil, nervuras de tábuas, vidros de remédio, o limo dos tanques, a noite em cima das árvores, o mundo visto através de um prisma de lustre....”

E com esse tesouro soube plasmar em tarefa constante, permanente, seu mundo encantado da poesia - no qual era possível transcender o sofrimento, as circunstâncias penosas, por meio de uma expressão personalizada, uma filosofia própria feita de grande espiritualidade, embora sem ligação religiosa, na busca pelo eterno do ser e da arte. Contando seu esforço em Tempo Viajado: "Dos meus retratos rasgados/ me levanto./ E acho-me toda em pedaços/ e assim mesmo vou cantando", ou "Quando o tempo em seu abraço / quebra meu corpo e tem pena,/ quanto mais me despedaço/ mais fico inteira e serena". Até chegar a se definir plenamente: "Eu canto porque o instante existe / e a minha vida está completa./ Não sou nem alegre nem triste: /sou poeta."

Seu poder introspectivo não a levava, porém, ao fechamento para a realidade social do país, e do mundo. Pelo contrário, seu trabalho como educadora , como jornalista, levou-a a viagens não somente a países da América e da Europa, mas a lugares distantes - Índia, Goa , Israel - em um amplo esforço de difusão cultural e intercâmbio literário, que lhe valeu até ser honrada com títulos de universidades estrangeiras. Tanto ela como o marido estabeleceram também uma ponte entre o mundo literário português e o brasileiro e desempenharam um importante papel na acolhida em solo pátrio a intelectuais perseguidos pela ditadura salazarista. Depois da morte de Fernando, e tendo cinco anos depois reconstituído sua família casando-se com um professor universitário, Heitor Grillo, Cecília foi ao mesmo tempo responsável pela difusão em Portugal dos escritores modernistas brasileiros e por fazer conhecer no Brasil os expoentes literários portugueses - a começar por Fernando Pessoa. Sua antologia Poetas novos de Portugal , publicada no Rio de Janeiro em 1944, foi obra capital, nesse sentido.

O Romanceiro da Inconfidência, de 1953 - uma de suas últimas obras - é a apoteose da poesia social , de origem histórica. No dizer de outro poeta, Murilo Mendes, "um livro que tem cabeça, tronco e pés, e que, posto a andar, sustenta sua rigorosa unidade", uma "obra de alta importância para as letras brasileiras" .

Cecília Meireles, nascida no dia 7 de novembro de 1901 na cidade do Rio de Janeiro, ali também faleceu, no dia 9 de novembro de 1964, rodeada do carinho dos seus. E nos deixou uma grande lição de vida, de talento bem aproveitado, cumprindo o que se propunha como missão, “acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo, e mostrar-lhe a vida em profundidade”. Ela queria que, nos seus livros todos vissem “que não são mais do que o desenrolar natural de uma vida encantada com todas as coisas, e mergulhada em solidão e silêncio, tanto quanto possível”.


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