16 janeiro 2011

MORCEGOS HERBÍVOROS [Estreia da coluna de crônicas por Luciana Martins

MORCEGOS HERBÍVOROS

Por Luciana Martins


Relendo os livros da série “Cantadas Literárias” da extinta Editora Brasiliense, constatei: da geração mimeógrafo “participei” somente no final — reproduzindo textos literários para meus alunos da Ceilândia, recém-formada na profissão de professora.
A poesia ficava mesmo era nos cadernos e cadernetinhas (hoje chamados “moleskines”, nome chique). Eu não tinha coragem de me dizer poeta (ou poetisa — escolham aí). Humildezinha perto de gente com carteirinha já: livro publicado e pose, muita pose. Sendo que eu só conseguia fazer pose sozinha, na frente do espelho do meu guarda-roupa, no quarto de minha adolescência tão curta. Ali, sim, eu tinha um palco.
Era quando eu aproveitava para dançar “Money”, de Pink Floyd, a tarde inteira, fingindo estar numa festa (em que eu quase nunca ia) rodeada de rapazes encantados com meu charme de dançarina.
O certo é que na noite em que fui numa dessas festas, fiquei “de canto”. Eu tinha quatorze anos. Só fora convidada mesmo porque era na casa de duas irmãs amigas minhas de colégio com quem eu tinha muita intimidade, apesar de sermos bem diferentes, sendo elas muito populares entre os rapazes e eu, exatamente o contrário. A amiga que eu convidei para ir comigo (morava na minha quadra e era bastante bonita) logo foi dizendo na entrada: “Vê se não fica no meu pé!” — uma das “melhores amigas”, que tal?
Zanzei a noite inteira com minha feiúra tímida de um lado a outro do salão. Escrachada mesmo consegui ser no colégio de segundo grau (era como se chamava “ensino médio” antigamente, já tendo sido também “científico”, termo que eu preferia). Era uma forma de chamar atenção ( e de esconder minha timidez — até hoje sou assim). Eu entendia tudo o que explicavam os professores, eu fazia todos os cálculos, eu tinha lido todos os livros....
“Este livro de Goethe provocou vários suicídios na época em que foi publicado. Quem aqui leu Wether?” Numa sala de cerca de setenta alunos do colégio OBJETIVO-SP/B, somente eu levantei o braço. Bom, fazer o quê? Era meu único momento de glória. O professor de literatura ficou surpreso, senti que ele estava certo de que ali não havia ninguém lido Goethe.
Pois é. Li Werther (aqui chamado Os sofrimentos do jovem Werther) num único dia de minhas férias em Barra do Corda no mês em que acabara de completar quinze anos. Inclusive eu sabia na ocasião do mito de que o livro matara tantos jovens na Alemanha do século XIX.
Terminei-o no fim da tarde, sentada num banco da praça da Igreja Matriz, bem na hora em que os morcegos saíam em bandos do alto da torre da Igreja, de lá onde ficam os sinos, onde subi uma vez, sentindo louca vertigem, com um medo danado de virar Kim Novak de repente. As escadas eram idênticas às do filme!
Então tocaram os sinos dando seis horas. Morcegos, morcegos a dançar no céu seu balé crepuscular, enquanto eu constatava preocupada: “Ué....não estou com a mínima vontade de me suicidar! Mas não era para estar? O que será que aconteceu?” Penso que eu acreditava mesmo estar sob a atmosfera do “Sturm und drang” romântico do fim do século XVIII e início do XIX.
Mas cadê a vontade de morrer? De me afogar num dos rios? O Mearim, talvez; afinal, o mais escuro e fundo. Onde arrumar um revólver às seis da tarde na Barra do Corda, aos quinze anos de idade, vestida num short e numa camiseta véa, sem nenhum charme de ser dândi?
Burra, burra!Sua burra! — xinguei-me.
É que veio vindo devagarzinho a verdade, finalmente. Foi a verdade que me salvou, apesar de ser terrível e vergonhoso reconhecê-la:
— Tudo isso é porque a tradução não presta, é uma porcaria!
Por outro lado, uff, que alívio, a culpa não era minha.
Era do tradutor medíocre que sequer deve ter traduzido direto da língua de Goethe e Nietzsche. Provavelmente traduzira de segunda mão, afastado três vezes da verdade, segundo interpretaria Platão.
Em suma, fui salva da vergonha por causa da Editora Abril (na época só havia no país aquela tradução de Werther; hoje há pelo menos umas oito). Estava vivinha da silva como aqueles morcegos bailarinos barulhentos.
Que belo fim de tarde!
Fui poupada de morrer como o pobrezinho do Werther, embora possua desde cedo um tanto considerável de sua angústia (tão bem interpretada por Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso, um dos livros mais sublinhados que tenho em casa.)
Parece que eu ia falar de poesia-marginal, não era? Fica pra próxima.

Um comentário:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Parabéns pela crônica de estréia de sua coluna aqui - Macondocá -, Luciana! Gosto desse 'postergar' como tecnica redacional. E sobre a Brasiliense, se é, de fato, extinta (apesar do sie, como me conta a Bel Furini) terá sido uma honrosa solução. É.

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