31 janeiro 2010

HAIK(C)AIS E MICROCONTOS - COLUNISTAS vs CONVIDADOS

Vida Animal

Por Luiz Contro (colunista)

O atraso, a pressa, o susto, o desvio, o meio fio.
Totó só queria buscar a bola do menino.

***

Nunca assumia os próprios erros.
Sempre transferia a culpa para os outros.
Por essa razão, convertido, adequou-se pefeitamente à fé evangélica.
Agora, para tudo que faz de errado, Satanás é o culpado.

Por Wilson Gorj (convidado)


" 69"
_
_

Por Marcelino Freire (convidado)

{Quatro caracteres, nenhuma palavra}


“Desertor no Deserto”
Por Marco A. de Araújo Bueno (colunista)
{Dez palavras, monofrásico}

PARTE I


Doze anos, palestino fronteiriço, dois de treino. Paramentou-se: explosivos, celular;

PARTE II

Ao toque, sacou dispositivo junto. Sucumbiu; deserto. Tel-Aviv/paraíso - Doze km!


HAIKAI
Por Rafael Noris
noite tão curta -
quando afasto o mosquito
é hora de acordar


HAICAI
Por Carlos Seabra (convidado)
jornal aberto,
café, leite e sangue:
guerra por perto


[Eis uma livre adaptação de haikai de Bashô no qual a expessão "cai pra dentro" e cumpre função de duplicidade de sentidos ao invés de pleonasmo. Não achei haicai com equivalente ousadia polissêmica entre convidados do blogue...

velho lago
o sapo cai pra dentro
barulho d'água.
Basho, tradução de Rafael Noris a partir da expressão de Zina (ele era cult e eu nem sabia).

Boa semana a todos, aniversariantes ou não

29 janeiro 2010

Infarto do miocárdio

Por Paola Benevides (ilustração e texto)

Enfarta o homem casado, geralmente cansado, em seus abatimentos cardíacos. É farta a mesa imposta pela mulher que sempre o aguarda. Ela portando um avental maçônico, sempre ao marido cozinhava. Ele gostava de comer cadáveres quase vivos. O bombeamento rarefazendo-se em sangue ainda quente era um prato cheio a forrar seu existencial vazio.

Pensava em divórcio, em dívida, porém não dizia nada, queria apenas a carne mal passada a não mal passá-lo por tanta fome de vida. Ela o ia consumindo à boca repleta. Esperava dez presuntos, desesperava em pratos limpos. Mais tabuleiros untava em vão e vinho. Circo e pão.

De repente, mão fria e náusea. Quando a sua esposa berra italianamente no fogão até ressoar pelas paredes do vizinho:
- Antes fosse de olho grande, mas morreu de ataque, Dio mio cárdio!

Fora mesmo assassinato a quem a coragem cometera suicídio.



28 janeiro 2010

TROVAS AOS ANAIS DE ORSETTI

CANTIGA DE MALDIZER
Por Marcelo Finholdt

Mote

Quem conhece o tal Orsetti?
Tanga frouxa lá da taba,
Fazedor de hum mil boquetes,
Vez em sempre alguém o enraba!

Glosa

Logo no Acre, nas aldeias:
Com calcinha, com corpete,
Cinta liga e meias feias...
Quem conhece o tal Orsetti?

Rebolando a biba segue:
Menstruando à beterraba
Dando sempre para os jegues,
Tanga frouxa lá da taba!

Ser comido é o que ele sabe,
Por pedreiros elegantes
E é por isso que é o esnobe
Fazedor de hum mil boquetes...

Lá na rede em seu cangote
Fungam machos entre as abas
Dos anais do bom frangote
Vez em sempre alguém o enraba!

ILUSTRAÇÃO - ESTUDOS


27 janeiro 2010

SOBRE A EXPLOSÃO NA 'E.H.M.' - DESDOBRAMENTOS



Ilustração: Alan Carline

“Sobre a Explosão na 'E.H.M.'– Desdobramentos”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno


Chamarem de 'requentado' esse assunto do acidente ocorrido na “Escola Hibris Mundial”, sinceramente, pouco me importa. Certo ímpeto de humor negro, ao contrário, já me impele a qualificá-lo de “chamuscado” – isso sim –, e me explico: houve, tem havido e é de se esperar que se alastrem desdobramentos tão funestos, que fariam corar toda a corja de “notáveis”, cuja honorabilidade canhestra, hoje, é matéria para carvoeiros: as labaredas destroçaram o arcabouço físico do campus, mas – capricho dos deuses - pouparam a alminha sacana que animava seu extemporâneo prestígio mundial. Toneladas de gigabytes sobreviveram junto aos detritos e eu, envolvido que me achava na ocasião e na condição de vítima sobrevivente, transformá-las-ei em caprichosa história recente valendo-me (que me chamem de posmodernista, pouco se me dá) até dos arcaísmos, das obsolescências mesoclíticas e de todo ferro velho vernacular que lhes provoquem “espécie”.

Pois até do século II ªh. (e que a própria hecatombe não fez submergir) extraí uma expressão belezera que bem qualifica a condição de indigência ética da Escola – “tempos do onça”. Que não me perquiram sobre a etimologia, mas é certo que alude ao anedótico como registro da velha cultura de massas. A “E.H.M” com seus campi espalhados pelo mundo reformado é uma instituição dos tempos do onça, uma ágora estéril e sem estilo, convalescendo de agorafobia (termo que tomo à “P^p” – psiquiatrizações classificatórias pós-cartolagem laboratorial, também do referido século II) e osteoporose pragmática (ossatura conceitual carcomida pela porosidade das investidas multidisciplinares da época). Pois bem, que me inquiram, agora sim - e o que fazia um profissional de linguagem geral perambulando por aquelas bucólicas pastagens no momento em que houve a tal explosão? “Macacos me mordam!”, exclamaria qualquer daqueles ascetas pálidos – Quem é que cora, agora? Onde estavam minhas fidelidades?

Sem constrangimentos (explico depois) de qualquer natureza, apenas um tanto quanto deslocado da ambiência exótica, eu portava um caixilho básico (sou usuário) contendo minha Proposta Reformática Contributiva I, ainda sub-graduada para efeito de renovação de passaporte aos confins do Continente de Suporte – Área 35. Algo suspeito? É que nem imaginam o que andam fazendo profissionais de linguagem geral (os “plg-beta) para quitarem seus créditos junto ao Departamento de Desertificação....Não tinha que me envergonhar; era apenas trocar meu uniforme, tomar as vacinas e uma boa dose de humor sintético, desses genéricos mesmo, de acordo com o poder aquisitivo do meu soldo e o da parteira que me sustentava nesta idade pré-produtiva. E minha idéia era boa: no âmbito contributivo da Sustentabilização, de forma meio difusa, estava subclassificada junto aos biodigestores. Munido de artifícios retóricos de ponta, com muita elegância no jargão e algum cinismo de praxe, lá estava eu com um assuntoso arsenal teórico que se justificava.
Tratava-se da pertinência corporativa, na gestão de dados catalogáveis de amplo espectro, de um aparato catalisador de reciclagem que batizei com toda a pompa de “Biodigestor Cognoscitivo na Assepsia de Dejetos Simbólicos”. Muita parcimônia nos gastos e muitos, muitos elétrons de pura ironia recoberta de retórica de confeiteiro, como concluiu, tácita e afetiva, minha rigorosa parteira. O problema físico das agências de dados, suas instalações nos “currais” dos campi ( só recentemente informatizados “em Declive Ótimo”), já estava equacionado. Como comprimir o material cognitivo residual, menor que fosse, sem por em risco o substrato canônico? Eis minha problematização: um reator de baixo custo aliado a filtro operativo, de tipo isonômico e redutor de ambivalências, baixo capital humano, etc., etc., ora – não era tudo o que desejavam os doutos reitores dos últimos feudos acadêmicos, para“otimizarem” armazenagem?Micro-silos ideativos?

“Tens o básico para propor ao que se requer para o próximo “Examem Sazonalis”, mas cabe adverti-lo – é matéria explosiva! Assim vaticinou minha parteira, prudente e flexível –“(...) terreno minado por veleidades, latinidades... vanitas..., cochichava-me. Mas é sítio perfeito para linguagem. E linguagem explode, esqueceu-se?” Não, estava aí a poética da empreitada e eu tinha sorte de contar com o respaldo de uma neopreceptora ágil que, embora sabendo das propriedades de auto-detecção de paradoxos embutida no meu biodigestor de idéias, houve por bem chancelar a empreitada; talvez por flertar, tímida, com paradoxos, inclusive os de prosódia, o que muito me divertia. A metodologia era automática, bastava acionar o programa. Problemas de revisão conceitual contornados, carente de passaporte, voluntarioso típico do pré-produtivo...parti. Eu e meu caixilho básico com o necessário-suficiente, mais a mais que suficiente pulsão de provocar reações.

Cheguei por água ao local, no meu continente mesmo –Área 12, o que me poupou gastos (não contava com Moedagem) e proficiência em Língua Uni-local; tanto que me distraía com as pernas longas da organizadora bem fornida ao perceber que me restava apenas uma cadeira vazia, e descobri o porquê: havia um teatro de arena em cima do local, como pingüim sobre uma geladeira; o posto onde me sentei arqueava-me os ombros sob um dos lances da arquibancada do teatro; o peso do mundo greco-romano em meu trapézio, nos dois – o Átila corcunda – eu, sem minha parteira, trapezista por pressão; nada parturiente de idéias...optei pelo humor, de cuja pílula, potencializada pelo hormônio do estresse, brotou uma impagável introdução: “A massa da produção cultural do antigo Ocidente não passava, para Sigmund Freud (séc. II) do que este associava à produção fecal, via processo simbólico denominado “Sublimação”. Muito do que um biodigestor POUBLOOMn.



Muito se obrou no período e não havia cisterna bacteriologicamente funcional que operasse como um biodigestor de toda PLOBOWNNMMMMMMnnnnnuffffffffBLAHHH (a explosão!) AQUELA M ERDA-----MERDA, TEM GENTE FERIDA AQUI TEM GENTE MORTA QUE MERDA É ESSA SEM TUMULTO POR AQUI SEM PASSAGEM ESSA PORRA É CALCÁRIO E GESSO SÓ E MAIS AS VIGAS E TRELIÇAS DESPENCANDO MERDA FOI FAÍSCA IRÔNICA QUE CAUSOU PROTEJAM SUAS CABEÇAS AS CABEÇAS MERDA PROTEJAM PROTEJAM SUAS CABEÇAS TODO MUNDO NO SOLO PROTEJAM OLHOS SEUS OLHOS E CABEÇAS TODO MUNDO CALADO PRA OUVIR FERIDOS GENTE MORTA AQUI ESTE AQUI MORREU{...}Protejam cabeças olhos no solo sem pisar cabeças sem massacrar merda merdaVOU RASGAR AQUI..Desdobramentos? Explico depois...

REGISTRO AO CONTO "SOBRE A EXPLOSÃO..."[FOTO SOLENE NOVO REITOR DA USP]



24 janeiro 2010

CONVIDADOS, DE CHALEIRA

Nas domingueiras 'intertenidas' pelo futebol, colunistas ou convidados fecham a semana com microcontos e haicais. Esta coluna estreia, nesta ordem, com um micro do Wilson Gorj (in 'Sem Contos Longos') e um haicai do Carlos Seabra (in 'Haicais e Que Tais'), ambos amigos do blogue, a quem agradeço essas jogadas de chaleira:

Era uma vez uma roda-dentada que conseguiu escapar da Grande Engrenagem.
Liberta, pôde, então, observar todo o funcionamento do mecanismo ao qual antes pertencera.
À medida que observava, ia perdendo os dentes...
Wilson Gorj
*****

Haicai sem kigô
É de quem bebe saquê
E pisa na fulo
Carlos Seabra

SOBRE A BELEZA E OUTRAS DORES

por Rafael Noris

Alguém lá em cima me proteja que hoje é dia de cortar grama e o sol está queimando tanto tão vermelho comunista não sei nem por onde começar – Um homem sem chapéu nasce pra se foder – mato lazarento que meu pai deixou para eu cuidar então instalo o fio na tomada e a máquina faz logo seu barulho insone que me lembra os toques noturnos da consciência após um dia sem sentido e quando me deito sempre digo coisas do tipo O celular vai matar a minha avó

Rum rum rum
--------------u
mur mur muR
u--------------
Rum rum rum

Uma hora e é como se estivesse num banho-maria sem maria só a tortura escaldante e as bolhas beijando os calos na mão – Você esqueceu a luva – e o meu carma aumentando aranhas e grilos triturados pela lâmina da máquina e os formigueiros novamente se tornam só areia espalhada e aquelas formigas nervosas como crianças nervosas e mordendo meus pés como se isto trouxesse suas casas de volta será que um dia elas vão entender que esta é uma oportunidade de fazer um formigueiro mais bonito e quem sabe poderão plantar uma flor no topo para que todos saibam que elas também gostam da beleza e pensam

Rum rum rum
--------------u
mur mur muR
u--------------
Rum rum rum

Estou acabando mas também estou acabado e quando me sento para descansar um pouco já começo a compreender a Verdade como se a grama cortada me fosse a sombra d’árvore Bodh o sol começa a ficar mais fraco e os animais se acalmam e vêm até mim se banhar em meu suor logo ouço trinados e pássaros passam por mim e pousam em mim logo também uma mosca em meu nariz uma cobra em meu braço direito e vou me inclinando com minhas costas queimadas meu rosto distorcido pelo calor de antes para a grama toda em volta de mim – Hoje não tomarei banho e tudo estará bem – tudo está belo é belo mas ninguém por perto para tirar uma foto e colocar no Orkut mas não tem mais importância pois os medos adolescentes se foram porque agora eu sei - Estou iluminado.

22 janeiro 2010

A CHALEIRA [IN-TERFERÊNCIAS]


Definição:
Utensílio culinário que, ao contrário do que o nome parece indicar – ver, por exemplo, cafeteira – , não foi idealizada para nela se preparar chá, mas apenas para aquecer água que pode ser utilizada para fazer chá, café, chimarrão ou qualquer outro alimento, bebida ou uso para água quente. Normalmente, o chá é preparado e servido num bule.
A chaleira tradicional é um recipiente de metal com a forma de um cilindro baixo com uma tampa no topo e um bico lateral. Este utensílio foi desenhado para aquecer água colocando-se sobre uma boca de fogão. WIKIPEDIA


A CHALEIRA
por Paola Benevides

Assobia sobre a chama uma torturada.
De tanto pisar na brasa nem sente.
Por isso assobia, assobia despreocupada.
Quer só dar de beber e arder ao lábio que a espera.
Assobia também como quem chama,
fazendo ponto na ebulição das cinco horas.
O aço tempera britânico. E ela está pronta.
Seduz a quem dá cabo dela e a segura, despejando todo o líquido.
Desfaz-se em perfumaça pela janela...
Chá-sumiço.

20 janeiro 2010

"O PRETO"



Ilustração: Alan Carline


“O Preto”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

Sim, evito mesmo contar o que se passou com aquele humano que, por causa da Síndrome do Ultravioleta, ficou conhecido como “o Preto”. Trago ainda nítidas as sensações de horror que me provocaram os detalhes horripilantes da história de suas últimas horas de vida na Terra. Alguns, inclusive, registrados, em seus detalhes escabrosos, pelo dispositivo sensório que portava como condição para prestar serviços naqueles antigos complexos de escambo de mescadorias-refugo, de resíduos arcaicos da tecnologia da época da convergência de meios digitais.E nada tinha que ver com a pigmentação da pele, da produção de melanina dele, mas com o GPS; não aquelas engenhocas também antigas de localização, e sim com a sigla que remetia a fenômenos relacionados ao Gradiente de Pressão Social , se é que se recorda dessas tentativas ingênuas de compreender-se a velha desigualdade social. O Preto habitava regiões esquecidas pelas reformas mais comezinhas, falava num dialeto alheio à linguagem universal e deslocava-se até o Complexo Sigma por infectos veículos de superfície, sujeito à chuva ácida e às aberrações climáticas de então. Consta que agia como um desafiador dos protocolos vigentes e era dono de uma coragem quase proverbial.
Assim foi que não se intimidou com a valentia robótica de seu parceiro de bancada naquele Box-37/anexo - 15, o tal que fazia fundo com toda a tubulação e a capilaridade da planta baixa do complexo, onde agonizou em cenas que fundiram a escatologia do drama pessoal dele, com o escoamento dos dejetos todos, mais a amônia que vazava, fora de controle.Às vezes viajo no tempo e imagino que ele tenha sido um emblema extemporâneo do tipo de estigma racista ancestral dos tempos em que nos restava alguma fatia da camada de ozônio; delírio de pesquisador melancólico. É que essa história, além de repugnância e náusea, causa-me tristeza, também extemporânea.
O Preto ficou para mim como o signo de uma resistência ao que me estremece pelo obscurantismo, ao que me assusta pela dilatação da experiência diante do insólito, da coisa cotidiana que se transforma num pesadelo, numa monstruosa combinação de infortúnios. A luta visceral dele resultou na crueza da exposição de suas próprias vísceras aos olhos e às narinas de uma escória mercantilista, robotizada, oriunda da imundície atolada nas práticas mais abjetas. Não por acaso ele retorna sempre à fantasmagoria desses submundos, como massa disforme de sangue pisado ou como um guerreiro nobre, em estado eterno de putrefação. Pois ele, conta-se, não se intimidou nem com o GPS que o desfavorecia de forma truculenta, muito menos com as ameaças de agressão de seu parceiro de Box, no Sigma. Enfrentava o primeiro perseverando no incômodo com certo cinismo, até. O outro, ele enlouqueceu de pavor, com a renitência da presença insuspeita de seu próprio cadáver insepulto por dias intermináveis de angústia, suspense e coexistência com a sensorialidade do repugnante, do asqueroso.
O martírio dele foi uma vingança requintada, ele era durão, você pode pensar; não foi bem assim. A princípio ele era maleável, dócil até, quando o parceiro explicava-lhe as regras tácitas que regiam as transações no local, advertindo-o que ele até poderia atingir alguma cota nas operações, desde que não atravessasse o limite. Que limite?
Ele próprio não sabia, nunca saberia. As transações já chegavam pré-agenciadas e o local físico servia apenas para inspeção visual e tátil da mercadoria. Isso mudava o rumo da negociação, às vezes. Aí entrava o carisma do Preto, que falava baixinho, macio, quase que integrando sua corporeidade às muambas, dando-lhes significação adicional, vida própria. Uma prática milenar, aperfeiçoada pela cultura oral; comum aos sobreviventes que chegavam a mimetizar a geografia mais áspera e a ambiência mais hostil conferindo-lhes alguma simpatia, infundindo-lhes algo de mágico. A sossegada magia dos distraídos, daqueles que vivem de domar o susto de viver rente à vida, ao vão das coisas. O Preto não se sabia assim. Sabia que não era daquela estirpe e que morava longe. Também sabia que não tinha medo de trombar com a vida. Não teria medo de ameaças torpes, insinuadas. Vivia sob pressão – mão estendida para o afago, punho cerrado para o soco – continuava a viver, continuava sempre. Continuou ouvindo que, continuando assim, catapultavam-lhe para outro satélite, para mais longe. Ouviu pela tarde toda que morreria de porrada, que lhe quebrariam os ossos e lhe vazariam os olhos. Quando sorria de medo vago, o parceiro gozava ao contar-lhe como o faria mastigar os próprios dentes, depois que lhe extirpasse os testículos em tração lenta e meticulosa. Então desviava o rosto pro longe e o parceiro mirava a sua jugular e lhe falava de sangue espirrando lentamente e regando seus úmeros retorcidos, como um chafariz. O parceiro era mestre em luta com seres intergalácticos e gostava de anatomia.
Houve algum daqueles recorrentes descontroles horários e o poente demorava a chegar. Os demais agentes foram deixando o Box -37 e os dois ficaram insuportavelmente silentes; um respirava pelo diafragma, o outro, pelo nariz até que o sentisse fraturado num golpe seco. Penso que, neste momento, o sensor acusou alteração no batimento cardíaco do Preto. O que se seguiu é indescritível no que tange aos sons que um humano pode emitir em circunstâncias de dor apenas imaginadas. A pressão arterial despencou e uma música eletrônica pulsante mal abafava estrondos impressionantes. Seguidas fraturas de galho seco, atestou um perito, pela escuta. O corpo parecia arremessado seguidamente contra parede a uns três metros, com uma fúria incontrolável, mecânica. Então, rangido de escada em caracol, pesado e, apenas dois dias depois, pelo vão da escada, alguém notou a massa amorfa, a bola de sangue pisado pelo vão da escada. Mesmo com as perfurações, os olhos pareciam esgazeados.
Sim, a Segurança recebera uma denúncia anônima dois dias antes, um gradil da área externa comum aos boxes fora arrombado. Mas não havia testemunhas. Não consta que o agressor tenha acessado os bastidores do Box nesses dois dias. Nada consta quanto aos operadores da Segurança do Sigma que desapareceram desde então. Nenhum filete de expressão na face estertorada de quem descobriu a bola humana em que se transformou o Preto. Tal como o parceiro, que, por dois dias, manteve-se sentado diante de seu monitor, catatônico como sempre, quem viu o Preto nunca mais viu mais nada.
Inverossímil, porém, é forma como descreveram seu desaparecimento, dois dias depois, num outro poente irregular – dirigiu-se à área externa e ricocheteou desbussolado como uma bexiga de gás até sumir da vista. Estranho isso...

19 janeiro 2010

SOBRE A FOME E OUTRAS DORES



Ilustração: Alan Carline


SOBRE A FOME E OUTRAS DORES




Era um cigarro em sua boca. A perna descoberta, chamando a atenção, é essa é essa, esse jeans curto, prato sobre este banquete esperando molho. Diminuiu a velocidade até parar e a olhou dos joelhos à barriga, poxa, que coxa, e lambeu os beiços pensando nas delícias que as vestes escondiam. Baixou o vidro da porta do passageiro, viu os braços se estendendo e o rosto surgiu.

Não perguntou o preço, mandou-a entrar para darem uma volta. A roupa e a maquiagem nunca mentem sobre a personalidade nem sobre a idade. Era velha como uma roupa que se esfarela ao lavar, a cor de seus lábios, péssima ideia, estética da pobreza, rosa choque sobre a pele morena. Mas ainda assim, uma delícia de corpo.

Circularam por uns instantes, rádio desligado e, sintética, Quer tudo? Tudo!, nada mais. Ela olhou o volume das calças, toda amarrotada, não acreditou, mas adiante com o trabalho. Ele nem olhou para o lado, dirigia lentamente, com a obstinação de quem mentaliza cada metro percorrido, sentindo cada impressão sem pressa, meio zen.

A mulher pegou o seu maço, mas quando foi acender Não! olho torto e desconfiança, a mão que segurava o câmbio passou por trás de sua cabeça e a guiou para baixo do volante Tem de pagar antes! soltou-a, então. Outra intermitência. Tinha fome e paciência, ela acendeu o cigarro. Quanto custa isso? Uns dez? Dez. Passou pela Anchieta e virou para entrar no Cambuí, muitos prédios, árvores, estacionou. Tome cinco, depois dou o resto, agora engole! Ela jogou o cigarro pra fora e fechou a janela, acumulou saliva e fez o que devia.

Ninguém na rua, exceto vigilantes que passavam de tempos em tempos. Quando ela levantou, ele pediu um cigarro, ele diria Dê-me um cigarro, se ao menos tivesse lido Pronominais, mas não. Não fumava, todavia, ele ainda estava nervoso, embora aquilo. Acendeu, ela também, janelas abertas e as brasas.

Me pague o resto, sem grosseria ela disse entre um trago, E cumpra o trato. Ele a olhou e ela malandra percebeu a indisposição. Ela deu mais um trago e tratou de ajeitar a coluna, abriu a bolsa abruptamente e o olhou. Sem resposta, abriu a porta do carro e pegou o que tinha. Não era um kit de tortura, mas estava nas mãos certas. Passou das mãos para as pernas, dela pra ele. Cravados nas pernas, uma em cada, garfo e faca, até o outro dia houve sangue e grito, mas a fome acabou.

16 janeiro 2010

SONETO XXII - verso alexandrino


SONETO XXII

Por Marcelo Finholdt

Nossa vida quer mais, nossa vida só pede,
Nossa vida é uma vida esculpida nas vidas!
Nossa vida quer mais é curar as feridas,
Nossa vida não tem um lugar, uma sede!

Nossa vida se pede, outra vida concede,
Nossa vida de fato é encontrar mais saídas,
Nossa vida é saber acenar quando há idas,
Nossa vida importante é o que sempre precede...

Nossa vida não quer outra mão, outro braço,
Nossa vida precisa... é de vidas inteiras,
Nossa vida não quer a vivência de um baço...

Nossa vida é viver procurando maneiras,
Nossa vida é ganhar, nem que seja no laço,
Nossa vida no espaço entre os fios das peneiras...



{Este é um dos sonetos que publiquei em 2006 em
meu livro "Sonetos"
( cinquenta sonetos em verso alexandrino).}

13 janeiro 2010

SEM NOME



Ilustração: Alan Carline


“Sem Nome”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno


- Aconteceu de novo, Téo, noite dessas; os mesmos calafrios, sudorese, pavor. Parecia pesadelo, mas eu via tudo, congelada de pavor e...

- E você contatou os cientistas de Itibaia, eu sei.

- Sabe como? Com sua proverbial intuição?

- Pelo meu auricular. Posso ser orelhudo, mas meu disco-cóclea é sensível como uma pastilha de silício; salva e memoriza os sinais todos. Só vocês fisicalistas para inventar um nome tão feio assim – cóclea...

- Não é fisicalista, orelhudo, é medicina que fazemos. Nove ciclos juntos e você ainda não registrou, Téo! Aliás, seu nome soa tão antigo. E essa bizarrice de só ficarmos nus neste telhado, pra ter privacidade...

- Privacidade? Você não enxerga essas galáxias orelhudas, olhudas...

- Mas elas não me enxergam, Teocênio.

- Como pode ter certeza? Mas soube que foi até os ufólogos. Isto sim é que soa arcaico. O único extraterrestre em sua vida sou eu.

- Não brinque com isso. Eu ando descompensada e estou investigando isso. Você me ofende quando banaliza minha aflição; não confia no que descrevo?

- Claro que confio, tantas evidências e polissonografias por pósitrons, diagnósticos diferenciais. Você não tem percepções delirantes. Confio sim, mas sua aflição é um excesso, um desgaste, um desgaste sem sentido. Sou o único extraterrestre que você percebe, que toca na sua pele e faz você vibrar. Sou orelhudo, não pavoroso.

- Meus exames estão bem sim e eu não gosto que fique tergiversando...

- Fique o quê? É jargão fisicalista novo?

- Não, orelha, mas temos um fato novo sim. Pronto, contei.

- ...

- Não sei como classificar a experiência. E algo, ou ela própria talvez, acabou me levando a outros contatos, além do grupo de Atibaia. É impressionante e estou muito só e apavorada. Foi como a sensação de sair do corpo, de não ter comando enquanto dirige seu próprio velOx-3. Tem aquela bifurcação na rodovia para a clínica – para a esquerda, vou para a clínica como sempre...

- Para a direita, a universidade...

- Como sabe?

- Ora, doutora, quem não sabe que à esquerda se vai para a refinaria de petróleo, cheia de agentes e seguranças, e à direita se chega à universidade e seus departamentos. Alguns, cheios de gente muito bizarra... desculpe. Eu sei.

- Sabe que estive no Departamento de Física! Como sabe?

- O que contou a eles? Não sei sobre o seu velOx-3, só acho uma temeridade dirigi-lo em rodovias...

- Exatamente o que conto a você há nove ciclos, ora. Acontece sempre do mesmo jeito – sou despertada pelo toque das mãos de um vulto luminoso como neon...

- Desde que está comigo, há nove ciclos exatos, não acontece mais o que você quase chama de tentativa de abdução, de contatos imediatos, não é?



II


Era! E este diálogo é um tanto ficcional? Sim. Eu o recriei a partir do que me foi relatado; fonte fidedigna. Como dizia um grande amigo, o L.F.Burnier, - “Tal como apanhei no pé”. O que se segue não é menos ficcional, nesse sentido do recriar, etc. Porém, o que nele haja de espantoso (não para mim, é claro) não haverá de turvar o grão do plausível, de coerência discursiva que andei checando em outras fontes. Pois se passou que, depois daquele encontro erótico salpicado de questionamentos sensíveis, marcados pela aflição dela contraposta à fleuma de Téo, e sobre o telhado do que ele chamava de gabinete, sob um tecido de estrelas, como suponho, mesmo em face da sujeira gasosa superior a duas mil ppm (partes por milhão), depois de um orgasmo povoado de ruídos perturbadores, ela adormeceu. Pela primeira vez lhe ocorrera a hipótese de que algo teria mudado, não só quanto à experiência em si, mas quanto à relação com Téo. Diálogos recentes terminavam em ressentimentos abafados, ele mais distante a cada pouco e ela perplexa com as coisas mais triviais que notava nele.Chegou a chamá-lo de extemporâneo, alienado, saído de um dicionário para estrangeiros e, o que parecia o pior – sem nenhum humor nisso tudo. A sensação nova que lhe assaltara com o veículo não tinha precedentes, nem biográficos nem na literatura médica disponível. O veículo parecia investido de inteligência própria! Não obedecia aos comandos dela de fazer a conversão à esquerda, rumo ao consultório, e, numa obstinação mecânica – estanha e suave – traçava seu próprio itinerário, rumo ao departamento de física da universidade. Lá, pesquisadores soturnos, ainda que polidos e solidários (solidários?), pareciam estar à espera dela, em prontidão, disponibilidade total nas agendas lotadas face à visita, de cuja finalidade, pareciam informados antes e melhor que ela própria. E como contar ao Téo sobre o clima insólito daquela conversa meio canhestra, meio fatalista... A ele, um autônomo que vivia de expedientes demasiado práticos dentro do que chamava de gabinete, cercado de interfaces despojadas e amigáveis; envolto num fog de evidências e rotinas banais. Alienado, longe dela, muito longe... Ao despertar daquele sonho no telhadinho, nua, a coisa aconteceu de novo, desta vez, em contornos nada oniróides, nada alucinatórios. A crueza insofismável e apavorante de uma realidade em si, infiltrada de uma sensação familiar de desamparo. No olhar daquele ser que tocava os braços dela, a expressão familiar e distante do próprio Téo.

Foi a última vez que o viu. Depois de algumas semanas de choque, só pensava em que gabinete teria ele se escondido, entre olhos de estrelas orelhudas, em galáxias nem tão distantes...Teocênio – um nome, pulverizado; um vulto-neon, intruso.

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