17 novembro 2010

MADRUGADA - MENINA

MADRUGADA-MENINA

Por Cecilia Prada

A madrugada veio de novo me acordar, menina de olhos insones e famin-tos, com uma ponta de medo me provocando, se enrolando ao meu lado -
toda questionamento. Hoje resolvi acolhê-la de novo, companheira que foi de alguns produtivos invernos.
Se enrola toda no cobertor, pede histórias. Então vou dizendo para ela: bem-vinda, companheira. Desculpa não ter te reconhecido antes, nestes dias todos em que te pus para fora, que te fiz ficar sentada ali no terraço, dependurada no céu e esperando ele explodir em rosa, amanhecer e te enxotar.
O que tenho feito neste tempo todo? Fiquei me remoendo, peso do mundo desabado sobre a pobre figura na cama, entortada de frio e de contas não-pagas. E depois, que idiota fui, me arrastando pelo dia com a dor que é um vazio na alma - o vazio que eu atribuía a não estar podendo fazer o que quero, escrever. Sem retraçar a causa imediata dessa frustra-ção, que era, então, digamos, isto: rechaçar, enxotar esse dom divino do tempo puro, todo meu, sem barulho nem horas marcadas, esse tempo que é a Madrugada, o presente de Deus todo aí ao meu dispor, energia-menina de olhos puros, se entregando.
A tua pureza, Menina-Madrugada, é a tua não-exigência. A grande vantagem da Madrugada é que ela é muda. Ela, o que quer é aconchego, embalo, é ser entretida, então tudo o que quer, palavras - e vou me derra-mando por elas - uma música de intimidade, então você, companheira, é o "tempo de antes", a partida preliminar , descompromissada, informal, sem exigências de forma e gênero, bate-bola, aquecimento lúdico. Espaço flu e que se movimenta, caleidoscópio de possibilidades que se ajeitam, que vêm me dizer:
- Então, Cecilia? E os teus livros em eterno preparo, e a tua eterna espera pela vida que não vem?
Com ela, Madrugada, não tenho cerimônias. É a mais discreta das confidentes, dorme o dia inteiro e parte da noite, não tem tempo para intri-gas. Com ela posso dizer - sabe, amiga? Confusão. Os livros ainda pedaços flu, sinuosos e escorregadios, oram me fogem durante meses, ora vêm, mas com exigências que me neurotizam, suas cobranças.
E o pior, começo a sentir o afastamento das coisas que antes queria tanto escrever.
- Mas você justamente não desejava esse afastamento? Não era dele que precisava para separar-se de si mesma, desenovelar-se, poder narrar, enfim?
- Sim....
Então vou contando para essa menina de olhos abertos e puros, vou contando coisas, de literatura, de mim, vou lhe falando da minha imen-sa fome de conversar, de brincar, de rir, de ouvir música com alguém, de tomar um chope com amigos, dançar. De viver – enfim. De escrever. De encontrar novas formas literárias que...
Eu a vou embalando docemente, vendo-a fechar os olhinhos de sono, par-tindo de mim – obsequiosa para com o dia que chega, masculino e prático, exigente de obrigações e projetos renovados. Mas, tão charmosa, antes de ir embora dormir nos braços dos deuses novamente, a Madrugada, terna namoradinha, abre um olhinho esperto e me dá uma piscadela: amanhã, me promete, estarei aqui de novo, não se esqueça, continuaremos a nossa conversa.






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