13 outubro 2010

PROFISSIONAIS DA SOLIDÃO [ANIVERSÁRIO DE NOVE MESES DO 'DE CHALEIRA]

PROFISSIONAIS DA SOLIDÃO

“Cada um está só no coração da terra,/ Transpassado por um raio de sol/ E de repente é noite.”- Salvatore Quasímodo

Por Cecília Prada (*)

Há na Inglaterra, em algum lugar, um Monumento ao Escritor : uma gigantesca cadeira vazia que se alça para os céus. Por entre suas pernas passa o mundo.
É a cadeira da Solidão, ousada, desafiante, bela – mas terrível. Pois nenhum outro artista tem seu ofício tão ligado a ela, quanto o escritor. Nenhuma obra artística requer tanto esforço concentrado, tanta necessidade de isolamento, tanto esforço de introspecção como o que tem sido empenhado através dos tempos na elaboração do grande patrimônio literário de que hoje dispõe a humanidade.
É possível que os freqüentadores de feiras de livros, bienais, viradas culturais – esse tipo de coisas – estranhem estas palavras se delas por acaso se inteirarem entre bocados de pizza e churrasquinhos, nos entre-goles de refrigerantes diets e de uma visita à jaula dos macacos. Para esses, “escritor” será certamente apenas sinônimo de aureolado, adulado, endinheirado: os “vitoriosos”. As imensamente invejáveis celebridades do momento, fabricadas e maquiadas ao gosto das circunstâncias pela mídia e pelo marketing, no mundo todo.
Das quais este livro não se ocupa. Ele pretende apenas, em pinceladas um tanto rápidas e contidas na precariedade do exercício do jornalismo literário de meus últimos quinze anos, extrair da biografia de alguns escritores brasileiros elementos que nos permitam desvendar os mistérios da criação artística que eles conseguiram levar adiante em meio a circunstâncias muitas vezes difíceis – impossíveis, quase. Quer as produzidas pelas determinantes da própria sociedade e do tempo em que viveram – preconceitos, incompreensão, pobreza, injustiça social – quer as mais profundas, derivadas de suas próprias limitações genéticas e temperamentais. Seres humanos que conseguiram, porém, superando escolhos e se infiltrando entre espinheiros bravos, executar aquele tipo de programação que um grande e solitário escritor, Guimarães Rosa , estabelecia: “A vida como gráfico, como o histórico de cada um de nós, como gradual solução de um problema muito sério, que cada um nasceu com ele, próprio e seu, e tem de ir, tateando e roendo, a trabalhá-lo, como um bichinho de goiaba, até conseguir-se fora da fruta.”
É dos hoje chamados “escritores literários” que nos ocuparemos aqui – de Mário de Andrade, Clarice Lispector, Cecília Meireles, a Euclides da Cunha, Lima Barreto, Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst e Antonio Carlos Villaça, entre outros. Daqueles seres cujo extermínio progressivo já denunciava, aos 81 anos, J.J.Veiga, em 1995, em palestra pronunciada na Biblioteca Mário de Andrade: “Olhem bem para mim, prestem bem atenção em minha fisionomia, em meu tom de voz: eu sou uma espécie em extinção - um escritor”. Do atordoado ser que, se ainda não extinto hoje, estertora em meio à enxurrada editorial quantitativa que é despejada cotidianamente por todos os meios tradicionais ou up-to-date midiáticos, sobre a sua cabeça – enquanto tenta, qual Camões, salvar-se do naufrágio mantendo intacto o manuscrito dos Lusíadas fora das águas.
Daquele ser que parece estar mergulhado, sempre, na compulsão de uma criação cujo mistério chega a desafiar até mesmo um dos maiores escritores da atualidade, Gabriel Garcia Marques, que pergunta: “Que tipo de mistério é esse, que faz com que o simples desejo de contar histórias se transforme numa paixão, e que um ser humano seja capaz de morrer por essa paixão, morrer de fome, de frio ou do que for, desde que seja capaz de fazer uma coisa que não pode ser vista nem tocada, e que afinal, pensando bem, não serve para nada?”



(*) Este texto é a apresentação de meu livro de artigos sobre literatura brasileira, “Profissionais da Solidão”, que deverá ser lançado ainda neste ano pela editora Ourivesaria da Palavra, de São Paulo.

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