20 outubro 2010

LITERATURA E LOUCURA: "UM PEREGRINO EM PERIGO"- I

LITERATURA E LOUCURA: “UM PEREGRINO EM PERIGO - I”

Por Cecília Prada


Há uma questão intrigante em literatura: até que ponto a atividade criativa tangencia os estados ditos “excepcionais” da mente? Pode um indivíduo classificado como “alienado” produzir obra literária válida? Ou ela deve ser vista somente como potencialidade catártica para conteúdos psíquicos doentios?
Durante uma vida dedicada à literatura, tive a oportunidade de encontrar algumas dessas pessoas, e de me debruçar, embora não sistematicamente, sobre sua obra. Hoje, relembro um personagem excêntrico mas tão humano que conheci, comovente, de grande talento mas obrigado a trilhar caminho espinhoso: o escritor carioca Antonio Carlos Villaça (1928-2005).

Nos vinte anos em que residi no Rio de Janeiro mantive relações de amizade com Antonio Carlos Villaça. Uma cena em particular está associada à sua lembrança: em 1972 freqüentamos, ele e eu, um dos primeiros “laboratórios de criação” criados no Brasil: uma tríplice iniciativa dos professores e escritores Affonso Romano de Sant´Anna, Gilberto Mendonça Telles e Silviano Santiago, na PUC-Rio. Cada um de nós, um grupo de parcos alunos e três professores, falava, em noites sucessivas, do seu trabalho literário. A vez de Villaça foi marcada por uma dramaticidade especial: a luz do prédio extinguiu-se de repente. Mas ele não se incomodou – era uma noite de lua cheia, e a luz fria filtrada pelas vidraças passou a envolver o nosso grupo. Nesse ambiente meio fantasmagórico continuamos a ouvir a voz do escritor, em um testemunho que nunca esqueceríamos:
- O que tem sido a literatura para mim? Sem a literatura eu teria me suicidado.
Villaça era uma “figura” – imensamente gordo, alto, apertado sempre, naquele calor do Rio, em um terno preto de tropical lustroso, camisa social e gravata. Seus pés, rigorosamente contidos em sapatos fechados, de amarrar, pareciam sustentar a custo o peso enorme. Um meninão ingênuo, de olhar míope e bondoso. Provavelmente homossexual, mas de uma discrição absoluta, um “enrustido”certamente,encerrado no mistério de sua descompensação hormonal. Sofria imensamente com seu físico, com sua pobreza, com a solidão quase absoluta – filho único, com a morte dos pais ficara absolutamente desprovido de vínculos familiares. Lembro como nos contava uma noite, em casa de Marcílio Marques Moreira, os pormenores da “tragédia de um gordo” que não podia sequer tomar um ônibus porque não passava na catraca, e nem mesmo servir-se da abundante frota de fuscas da época. Só um táxi amplo, de quatro portas, conseguia acomodá-lo. E também, queixava-se, tinha de gastar tanto pano para mandar fazer um terno, coisa cara...gordo tinha de ser rico...e ele tentava sobreviver somente com o que escrevia.
Mas estava em todos os lugares onde literatos se reuniam, adorava fazer discursos e prestar homenagens, comparecia com zelo inabalável a todas as posses da Academia, a todos os funerais de intelectuais notórios, discursando aqui e ali sempre que podia. Cultivava admirações pueris por medalhões que não valiam a sua sombra, registrava todo o miúdo anedotário da vida intelectual do país, sonhava sempre com a imortalidade acadêmica – que nunca lhe foi concedida. Obteve, porém, da ilustre casa seu maior galardão, o Prêmio Machado de Assis, em 2003, pelo conjunto de sua obra.
O primeiro e mais importante livro de Villaça, o autobiográfico O nariz do morto,continuado mais tarde em O anel e em Monsenhor, foi saudado pelos críticos da época (1970) como verdadeira obra-prima,ponto alto de nossa memorialística, colocado acima de Joaquim Nabuco, de Gilberto Amado e até mesmo de Pedro Nava. Diz Carlos Heitor Cony, dele: “Poucos escreveram tão bem, tão limpamente e tão profundamente”.

Um comentário:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Prez. Cecília, noto, pela riqueza e metodologia de sua investigação, que a coluna Brevideias consolida-se a partir dessa terceira iniciativa. Temática palpitante (a ser cocluiída no próximo domingo), o escopo que lhe advém dos seus 40 anos de escritora etc. impulsionam a seguir-mos por esse itinerário teórico-conceitual, algo difíssil de se achar na blogosfera literária. Parabéns !

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