30 setembro 2010

SONETO DO INDULTO




Por Marcelo Finholdt


Garantiram que a vida seria divina,
Convenceram a massa a seguir seus preceitos,
Logo a massa gerou os mais vis preconceitos,
Por pensar igualmente ao odor das latrinas.

Conquistaram no verbo através das doutrinas:
Inocentes febris com espinhos no peito,
Mais velhacos da fé e demais insuspeitos
Elegeram Jesus e puseram batina.

Coroinhas também vestem roupas de santo,
Das batinas somente usufruem adultos.
Pobre Cristo a viver enrolado em seu manto...

Das batinas exala um fedor mal oculto
Coroinhas sem manto ecoando em seus cantos
E, com roupa de santo alguém ganha outro indulto!

29 setembro 2010

MULHER E PEIXE



Por Cecília Prada

A coisa afinal é bastante comum. Que velhas senhoras fiquem afantasmadas pelas casas, conversando com gatos, ou com algum cachorro míope, acontece. Ou acontecia, antes da descoberta da televisão. Mas esta senhora, de quem falarei, andou desenvolvendo nos últimos anos uma estranha mania, a de conversar com um peixe, vivo, enorme, metro e meio, bege com pintas marrom, peixe de boca sempre aberta e olho lateralizado a olhando, maroto e cúmplice.

Um peixe que se chama Zé.


Manhã cedinho ela acorda se sacudindo, esticando as barbatanas douradas na cama-aquário, essa mulher aquática de manhãs paulistanas de neblina, degustadas por tão raras - agora que as levas e levas de severinos seqüestraram a Cidade primeira, antiga, a Cidade que tinha vagar e espera : o cheiro do café com leite e broinha de fubá, a voz da mãe na cozinha, venha tomar antes que esfrie, e depois seria o colégio, as vozes agudas , gorrinhos vermelhos das meninas no pátio, pequenas deliciosas expectativas, nas aulas de Português a sua composição sempre elogiada. Era a menina que escrevia tão bem.

E a mulher de 60 anos agora passando pela sala apressadinha, lá estava o seu peixe grandão, dorso luzidio, e aquele olho a seguindo - às vezes o achava mesmo antipático, lembrava aquele Olho sempre olhando que é o de Deus que tudo vê, o deus judaico das caixas de fósforo marca Olho, deixa de me olhar assim, Zé! E depois, veja bem, afinal estou fazendo tudo o que é possível fazer , consideradas as circunstâncias todas que tais, etc. É verdade que tem aquela conta indecente do condomínio que eu fui jogando debaixo do tapete, tem, e que criou mofo e formiguinhas e correções, sei lá como todas as contas crescem menos a minha conta bancária, que foi minguando minguando que virou mingau de minguadinha, o gerente do banco me mandou aquela outra carta malcriada, queira por favor comparecer urgentemente,etc. -- o que eles querem que eu faça, Zé?



Havia também o porteiro do edifício, que tinha a mania de transmitir recados indelicados por baixo das portas, do Credicard, da Eletropaulo, da companhia de gás, até de uma butique em que há um ano comprara em suaves prestações uma blusa e um vestido de uma decência tardia e permitida - que o filho classificara como vaidade. O desvão da porta, Zé - assim que se diz, desvão? -- é uma imensa ameaça. Estamos aqui nós dois, meio eu te dizendo umas verdades, que você também me olha de jeito antipático às vezes, como se eu não trocasse a água do teu aquário ou te deixasse sem ração.

Um olho só, ha!ha! como você quer rir de mim, ou me julgar, se tem um olho só?

Mulher conversando com um peixe dourado chamado Zé, enorme, metro e meio - e que tem um olho só.



Mas então, Zé, o desvão da porta e suas ameaças. Às vezes estamos aqui tão tranqüilos na tarde, não é, nós dois...Acho que nos amamos um pouco. Pelo menos eu te amo, um pouco. E o que foi feito do amor, do grande amor/amores da minha vida, amor em pedaços, epa! virou/viraram nome de uma franquia, ha!ha!...Já trocamos muitas risadas cúmplices, não é Zé? E então, slip, alguém - a mão invisível do outro lado, ah! a terrível mão do destino? ou do porteiro Severino? - escorregou três envelopes no carpete (manchado). E eu sei, nós sabemos, não é, que são mais cobranças. Nós até nos enganamos, ou eu pelo menos quero me enganar, nada disso não. Ah! vai ver, nada disso. Condomínio em cobrança, luz, gás, telefone, cartão de crédito, a carta malcriada do gerente do banco...Impossível, por que alguém perseguiria tanto nós dois, não é Zé?

Que mal fazemos ao mundo? Estou eu aqui sentadinha no meu sofá, lendo meus livrinhos, meus proustezinhos, senhoras de uma certa idade lêem eternamente Proust. Hoje. Minha avó lia a Imitação de Cristo, ensebada, lia de cór, à noitinha ficava lendo perto da janela para aproveitar a luz escassa vinda de fora, para economizar a luz elétrica.

E você aí, na sua parede, grandão, de um olho só me olhando matreiro. Matreiro melancólico e um tanto crítico, Zé.

Você de um metro e meio e pintas marrom, dorso luzidio, você ai dentro do seu aquário, um aquário chato e comprido, com uma moldura de mogno, ai onde te enquadrei, companheiro, você último quadro na parede que já foi despojada até de uma gravura de Dali - que me encheu a geladeira por vários meses.

Você, peixe-imortal, remanescente, peixe-símbolo, fé, esperança, caridade?

(Crescem virtudes cardiais nas frinchas do desespero).



Abro a geladeira, suas prateleiras vazias me olham com assombro desdobrado. Mas pode ficar tranqüilo aí me olhando, Peixe Amigo, Zé - há um certo terror no teu olho espantado? Fica sossegado, amigo. Eu não vou te comer.

Você - último quadro na parede deslavada, você presente de um pintor, meu amigo Domingos Seno.



Do livro Faróis estrábicos à noite -2009




28 setembro 2010

AQUELE CUJA FOME ESPERA


AQUELE CUJA FOME ESPERA


Por Marco A. de Araújo Bueno


Aquele cuja fome espera
A fome que estará saciada
No outro, enquanto este, quimera,
Padece de fome engaiolada...

E, se o que sacia a fome está, sempre
Apenas onde nós a pomos,
Pra que enraizar felina fome
Entre patas caninas e alpiste sem nome!?

E se, então, surgir a liberdade
Que desmoronasse a espera em cadeia
E desencadeasse uma fome dual ?!

Libertos estariam, um para o outro,
E, ambos, para a saciedade
Ou para a liberdade de esfomear-se da falta.


{Soneto produzido contra o relógio [15'] em face do cartoom acima como mote, em oficina semestral do ficcionista e editor Nelson de Oliveira. Oportuno aqui, por homenagear o trabalho dele, melhor contextualizado no mais recente programa Letra Livre, TV Cultura. Venceu concurso, mas isto é outra história}


27 setembro 2010

Primeiro haicai desta primavera

O meu chá só pôde ser servido a noite, motivo pelo qual peço desculpas a todos os leitores daqui. A culpa é do tempo, claro. Por isso, um haicai (ou uma crônica em três versos):


primavera alegre -
a papinha colore
a roupa do bebê.

26 setembro 2010

GUIMARÃES ROSA II


GUIMARÃES ROSA II:

Um sonâmbulo de Deus

Por Cecilia Prada

A profunda religiosidade de Guimarães Rosa impregnava todos os atos de sua vida e está presente em toda a sua obra, na sua correspondência, nas conversas com amigos. Ao escritor moçambicano Joaquim de Montezuma Carvalho dizia, em carta transcrita por sua filha Vilma no livro Relembramentos: “Quanto mais leio e vivo e medito,mais perplexo a vida,a leitura e a meditação me põem. Tudo é mistério. A vida é só mistério. Tudo é e não é.Ou às vezes é,às vezes não é.(Todos os meus livros só dizem isso) [...] Rezo,escrevo,amo, cumpro,suporto,vivo - mas só me interessando pela eternidade. [...] Quando faço arte, é para que se transforme algo em mim, para que o espírito cresça; e desejando ser um sonâmbulo de Deus".

A própria Vilma lembra: “Procurava os nexos entre o visível e o invisível, o sensorial e o ultra-sensorial”. E diz que ele a ensinara “em aprendizagem de infinito, a sobrevivência e a vida perfeita à nossa espera.”

Uma religiosidade, porém, que não lhe estreitava os horizontes e não lhe impunha nada – a liberdade de pensamento mais ampla, que nunca limitou, permitia-lhe mesclar à fé católica da infância os mais bizarros aportes de outras filosofias e crenças. Inclusive no campo esotérico – respeitava o kardecismo, a cabala, a umbanda, a quimbanda, e até as várias práticas da feitiçaria. Era supersticioso ao extremo - basta lembrar suas objeções a tomar posse na Academia. Dizia que não resistiria à emoção e morreria. O que realmente aconteceu: morreu de um ataque cardíaco, no dia 19 de novembro de 1967, três dias após ter sido empossado. No próprio discurso de posse não hesitou em recorrer à astrologia e discorrer sobre o signo de Escorpião para justificar traços de caráter de seu predecessor na cadeira, João Neves da Fontoura. E louva o seu vezo supersticioso: “Supersticioso,sim;e claro. Superstição não preconceito, o ilusório: antes quase poesia. Percepção e arejo, defensivo psíquico automatismo, uma respiração cutânea do espírito, talvez. Soubesse que poesia é remédio contra sufocação.”

Suzi Frankl Sperber, professora-titular de Teoria Literária da UNICAMP, especialista na obra de Guimarães Rosa, dela ressalta justamente a experiência de ascese espiritual do escritor, simultânea à maturação literária. Em seu livro-tese Guimarães Rosa – signo e sentimento, ela demonstra como Rosa já moldava seus contos no livro de estréia, Sagarana, em uma estrutura baseada em exercícios espirituais, seguindo um padrão de parábola, que é o temário da força e do destino –“provocação-conflito-reação”. A partir desse livro, diz Suzi, “a liberdade de criação lhe abre os caminhos, praticamente em uma medida paralela ao crescente espaço espiritual que se constrói e amplia com a quotidiana prática de valorização do humano”. Em entrevista que me concedeu em 2008 sobre o tema, a professora acena para a possibilidade do escritor ter sido influenciado, no tempo em que viveu em Paris, pelo místico George Ivanovitch Gurdjieff – uma informação que lhe foi passada pelo filósofo Vilém Flusser, amigo de Rosa. Uma das frases mais conhecidas de Gurdjieff é : "Um homem pode continuar a ser um homem, ainda que trabalhe com máquinas. Há outro tipo de mecanização muitíssimo mais perigoso - ser ele próprio uma máquina". E ,como diz Suzi, “Guimarães Rosa cuidou de não cair em mecanizações, engessamentos, quer na vida espiritual, quer na linguagem”. Razão que explica porque o leitor que se abandona ao fluxo discursivo rosiano não somente se deleita com a beleza do texto mas passa a descobrir que muitos trechos carregam filosofia, lições de vida, reflexões fundamentais.

A preciosa primeira edição de Grande Sertão:Veredas (José Olympio, 1956) é toda ilustrada com misteriosos desenhos encomendados ao ilustrador Poty, e que, como o próprio Rosa esclareceu mais tarde aos tradutores francês e italiano, Villard e Bizzarri, seriam verdadeiros “hieróglifos”, destinados a integrar sentidos mais sutis, e secretos, do seu texto.

Decifração essa que ainda está por ser feita, como diz Marcelo Marinho em tese de doutorado de 1999, defendida na Sorbonne, sobre a presença do enigma na meta-literatura de Guimarães Rosa. A interpretação dos signos-hieróglifos do autor mineiro, diz Marinho, “poderia orientar uma série de novas perspectivas de leitura para este romance plurissignificante e enigmático”, as quais, por sua vez, desvelariam “novas camadas palimpsêsticas do romance[...] em detrimento de mortas veredas regionalistas”, e, segundo recomendação expressa do próprio romancista, dirigidas à descoberta de suas “altas veredas metapoéticas”.

Confessava Rosa à revista Manchete em 1963 que não sabia bem o que era, se “cristão de confissão sertanista” ou “taoísta à maneira de Cordisburgo” ou ainda “um pagão crente à la Tolstoi”. Definição que para ele não tinha a menor importância, porque no fundo “a religião é um assunto poético”. O que valia, sim, e está presente de maneira coerente e incessante em toda a sua obra, é a inquietação metafísica, seu diálogo permanente com “o diabo” que exista, não exista, como diz seu personagem Riobaldo, parece reger o mundo. E com Deus, porque “com Deus existindo, tudo dá esperança, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra.”



25 setembro 2010

UM FESTIVAL É UM FESTIVAL, QUE É UM FESTIVAL

Por Daniel Matos


Estação Ipanema, o cinema, saio corrido, pois o nome dava a impressão que haveria uma estação do lado, mas naquele tempo ainda não havia metrô. Corrido pelo trânsito para chegar na estação Paissandu, quando este ainda existia. Garota fica atrás na área de fumantes. Embrenho-me pelas cadeiras no meio. Filme ainda não começa, casal de garotas discutem a programação à direita, falamos de filmes coreanos. Luz apaga, vinheta do festival aparece, começa o filme: Dália Negra. Segundo festival, talvez terceiro, não tenho certeza, os anos se passaram.
O Festival do Rio de cinema não é um evento para se ver filmes, é um evento para se entrar em quatro salas escuras, uma atrás da outra, de forma compulsiva, e ver imagens de lugares distantes se embaralharem enquanto seus olhos pedem por socorro. Ver um beduíno enfiando a mão na garganta de um camelo para lhe arrancar a água, uma menina alemã dançando numa boate de queixas em Tókio, um pequeno intelectual francês dialetando consigo mesmo por duas horas, um homem sorridente tacando de um navio um anão sem braços e pernas. Até hoje, um máximo de 36 dos cerca de 300 geralmente apresentados no cardápio sempre muito amassado em minha mochila. Dias e dias, comendo pizza em um pote, ou conversando em filas com uma versão mais alta da Scarlet Johanson. Quero ver uma Copolla e um Mahkmalbaf!

22 setembro 2010

GUIMARÃES ROSA I

GUIMARÃES ROSA I :

TARDES NO ITAMARATY

Por Cecilia Prada


A memória de João Guimarães Rosa permanece como encantamento maior de nossa literatura, 43 anos após sua morte. Sua obra é um legado de riqueza inextinguível em que as gerações sucessivas continuarão a se inspirar. Mas não foi seu único legado.Para todos que tiveram o privilégio de conviver com ele – como eu própria - também nos ficou a memória de um ser humano acima da média, caminhando alto na trilha da espiritualidade, da bondade,do saber.

Conheci Guimarães Rosa na década de 1950, justamente nos anos em que lançou suas grandes obras. Explico: fui eu própria diplomata de carreira, de 1955, ano em que prestei o vestibular para nossa academia diplomática, o Instituto Rio-Branco do Ministério das Relações Exteriores, até o final do ano de 1958. Então, quando, formada e atuante na qualidade de Cônsul de Terceira Classe, ou Terceiro Secretário ( no masculino mesmo), casei com colega de carreira, fui forçada, por ato inteiramente anticonstitucional do MRE, a demitir-me. Depois, casada, permaneci no Itamaraty até 1973, ano do meu desquite – o que resulta em 18 anos passados na ilustre (e machista) Casa de Rio-Branco.
Meu primeiro encontro com o escritor deu-se no próprio vestibular , ao tê-lo como examinador na prova oral de Cultura Geral. Ele era então Ministro de 2ª classe. Tenho uma vaga lembrança de ter sido argüida sobre literatura grega antiga e moderna arquitetura brasileira. Passei. Nos anos seguintes participei muitas vezes de descompromissadas conversas com ele, na hora do lanche da tarde, no Bife de Zinco – o modesto restaurante do Itamaraty que tinha essse apelido pela sua cobertura de zinco e em oposição ao mais refinado restaurante do Rio na época, o Bife de Ouro.
Rosa ia levando aqueles anos longe de qualquer agitação social, empenhado no trabalho literário.Gostava da rotina sem sobressaltos, do tempo que lhe sobejava para dedicar-se a seus escritos. Sua filha Vilma nos revela no livro Relembramentos detalhes pitorescos no cotidiano do gênio, as meninices retidas no homem maduro que tinha sempre uma reserva de jarrinhas de mocotó e doce de leite de Minas no cofre de sua Divisão – em meio a uma multidão de contos inéditos.
Alto e corpulento, com cabeça e pés que pareciam pequenos em comparação com o resto do corpo, caminhava de maneira muito característica, como se escorregasse, silenciosamente. Como se pairasse acima da mesquinhez cotidiana, de um modo sutil, como quem não quer se fazer notar. A anacrônica gravata-borboleta que usava sempre era uma espécie de signo característico, sublinhando o rosto afável. Diria dela Carlos Drummond de Andrade em um poema-necrológio que lhe dedicou: “Projetava na gravatinha/ a quinta face das coisas/ inenarrável narrada?”
Havia na sua discrição uma espreita, parece, da vida, das peculiaridades da linguagem, dos gestos e expressões de futuros personagens. Uma curiosidade benévola, uma ingênua curiosidade de rapazinho - melhor, de artista. A identificação com o personagem Miguilim, de um de seus contos, ocorria. Gostava de sentar-se com as datilógrafas, com os funcionários menores, com os diplomatas iniciantes, como eu – simplicidade ímpar em uma instituição que sempre primou pelo elitismo, pelo racismo, pelo mais feroz machismo. E em um tempo de rígidos protocolos, quando alguns chefes chegavam a censurar os colegas mais jovens pelo desgostoso hábito de cumprimentarem as datilógrafas.
“João” (queria ser chamado assim) cumprimentava com a mesma afabilidade risonha contínuos, faxineiras,datilógrafas, embaixadores. À sua mesa a conversa se desenrolava mansa, levada pela sua mineirice.Parecia passar ao largo da carreira diplomática. Mas isso não era verdade. Amava a carreira que lhe dera viagens, o tempo vivido no exterior que lhe permitira especializar-se em línguas (conhecia mais de 20), em culturas exóticas – das quais extrairia os elementos que permeiam toda sua obra. Pela sua notável atuação na chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, o Governo brasileiro deu seu nome, em 1969, a um pico de 2.150 metros descoberto na fronteira entre o Brasil e a Venezuela.
Sua atuação como Cônsul em Hamburgo durante a Segunda Guerra Mundial confirma a excepcionalidade do seu caráter. Apesar da política de simpatia mantida até 1942 pelo Governo Vargas pelo Eixo, e dos obstáculos oficialmente impostos à entrada de judeus em nosso país, Guimarães Rosa manteve sempre uma orientação inabalável de favorecimento à concessão de vistos para os fugitivos. Tarefa perigosa, na qual foi ajudado por sua mulher, Aracy - dizem que na realidade teria sido ela, quando era ainda uma simples funcionária do Consulado, que sugerira ao Cônsul o que ele confessaria mais tarde ter sido “um estratagema diplomático” – emitia o visto omitindo a religião do portador. Em 1985 o Estado de Israel, reconhecido, deu o nome do casal Guimarães Rosa a um bosque nas encostas de Jerusalém, e no Museu do Holocausto encontram-se depoimentos das pessoas salvas por eles. Ainda durante a guerra, Rosa demonstrou heroísmo ao entrar, após um bombardeio, no prédio que abrigava o Consulado do Brasil, para salvar arquivos sigilosos. Assim que saiu, o prédio desabou totalmente.
Durante os anos que passei no Itamaraty, tive ocasião de testemunhar sua timidez, sua modéstia. Ao cumprimentá-lo, em 1958, pela sua promoção a Embaixador, confessou-me sua inquietação por ter de escolher um posto no exterior, quando só queria ficar sossegado, escrevendo. Foi mantido no cargo, e nele permaneceu tranqüilo, comendo seus docinhos, fumando muito (era um tabagista inveterado, o que certamente lhe apressou a morte) e escrevendo muito.
Naquele mesmo ano, Reynaldo Jardim, meu ex-colega da Cásper Líbero e editor do Suplemento Literário do Jornal do Brasil, pediu-me para entrevistá-lo. O embaixador me recebeu com a maior gentileza e a mais simpática recusa, usando a terceira pessoa para falar de si próprio: "Filhinha, o Guimarães Rosa não dá entrevistas. Mas não se preocupe, o Guimarães Rosa vai lhe indicar pessoas que falarão sobre ele, para você realizar o seu trabalho". Indicou dois de seus grandes críticos, Manuel Cavalcanti Proença e Oswaldino Marques, a cujos depoimentos juntei o do poeta Alberto da Costa e Silva, que era meu colega de turma do Instituto Rio-Branco, e consegui fazer matéria de folha dupla para o Suplemento.
Nesse encontro, a maior surpresa me esperava no fim. Quando me despedia, ele me reteve um momento mais, meio encabulado: "Escute, o seu jornal às vezes publica contos. Até faz uns concursos.Você acha que publicariam um conto meu? Penso às vezes em mandar algum, mas não sei...". Aquilo parecia até uma brincadeira, uma ironia de Rosa. Mas era tão sincero aquele grande homem à minha frente, que só consegui balbuciar: "Mas, Embaixador...o senhor...ora, imagine!", e coisas que tais.
Dei o recado ao Reynaldo, que publicou alguns de seus contos mais “difíceis” – de Tutaméia, creio.






21 setembro 2010

MINERVA

Ilustração: Alan Carline

Um dia uma pessoa acorda e acredita que o mundo tem que ser como ela quer, mas esse mundo não existe!
“É exibindo uma natureza infantil perversa que o “fruto verde” se defende contra o homem” disse Beauvoir.
Renata encarava o olhar de Otavio que não permitia que ela fosse mais o que foi até o presente momento.
Seu comportamento ao lado da deusa Minerva seria pitorescamente definido como feminino?
A originalidade de Minerva deveria ser objeto de conquista dos frutos verdes- arte, sabedoria e guerra. Se usados nos momentos certos sempe serão golpes certeiros, golpes de prudência que o fruto verde deve aprender a usar. Já que, reformar e moldar são tarefas masculinas. Nenhum homem aceita ser dominado, um dia ele simplesmente acorda, percebe alguma fragilidade e revolta-se.
O fruto verde é a mulher inocente, que pouco a pouco descobre o mundo, e vai assim caminhando e deixando de lado sua ingenuidade, mas carrega com ela o peso da figura masculina desejada.
Peso, porque nem sempre o homem aceitará ser o obeto de suas expectativas. Principalmente em pitorescos rompantes de sua ingenuidade que ainda agoniza.
E assim espera-se a morte do fruto verde e o nascimento súbito de um fruto pronto e adulto.

20 setembro 2010

HEFESTO

Antes que eu começasse,

o alicate, tornou-se

Pá.



Antes que eu me mexesse

o alicate serviu-me

Chá.



Antes que eu me cortasse

ou me furasse com

Agulhas:

água morna

e açúcar.

.

19 setembro 2010

CHUVA

CHUVA

Por Cássia Janeiro

Há dias em que chove dentro de mim.
Não uma tempestade,
Mas uma garoa fina e fria que me
Toma de assalto.
Nesses dias a vida sofre para viver.
Nada pode ser feito,
Nada agasalha a alma doída,
Ao relento.
È antes uma névoa que me impede
A expressão,
Do que a ausência do que se pode
Expressar.
Em dias assim eu me recolho incompleta
E não me exponho ao sol,
Posto que seus raios não me penetram.
Em dias assim devo lembrar: isso passa.
Nesses dias, deixo-me chover e escoar

18 setembro 2010

*Sheol

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Um dia você vai se complicar por tanta relva. Onde estão suas árvores? Um campo aberto é desespero, apesar de tanto verde. Há incerta esperança muito queimada de sol. Bem podia ter frutos coloridos a enfeitar as copas. Sementes poderiam cair ao solo para germinar outras flores, não essas ervas-daniscas!

Sei que você é propício às brincadeiras de criança, à soltagem de pipas. Serve até como pista de pouso para balões. Mas não vejo sentido em correr sem chegar, em pisar grama sem rumo. Essa sua linha do horizonte nunca acaba. O que tem depois? Anoitecendo, só posso contemplar as estrelas. Deito sobre sua espinhenta grama a me fartar mais de infinito. Umedeço ao relento. Acordo com chuva, sem qualquer abrigo.

A não ser que eu lhe cave. Construir um casulo sob a terra não é má ideia. Mas imagine se eu aprofundo e me soterro. Ninguém veria meu próprio enterro ao luar. Nem quando amanhecesse. O céu de azul arrebentado roubaria toda a atenção. As nuvens, então, eu tocaria em segredo. Sim, porque tanto o acima quanto o abaixo estão colados para quem observa de longe.

Estaria eu no tão proclamado paraíso? Devo ter morrido de tédio mesmo com isso. Morro duas vezes. Gostaria que este cheiro de chá a me entranhar o espírito evaporasse tal mágica agora. Cansei de relaxar, prefiro a agitação do asfalto, os cheiros de fritura e as cores poluentes de qualquer cidadezinha. Vou tentar dormir. Quem sabe assim poderei deitar um pesadelo ou sonhar um acordar mais habitado e vivo.

O cortinado batia com força contra a janela entreaberta do apartamento na Av. Babel. A ventania do lado de fora sugava o pano, assobiando um grito. Era dia seguinte, tinha morcegos, aviões, anjos e pterodátilos. Eclipsava.

Bocejo: - Ora, mas eu estava já dormindo?!



_________________________________________
*Sheol, Xeol ou Seol, (pronunciado "Sheh-ol"), em Hebraico שאול (She'ol), é o "túmulo", ou "cova" ou "abismo". 

16 setembro 2010

15 setembro 2010

O INVENTOR DA PEDRA

O INVENTOR DA PEDRA

Por Cecília Prada

Caro poeta Drummond: como é sabido, você deu à humanidade essa contribuição, fez esse favor: nos fazer notar que ela estava ali, na vida de cada um de nós. Que a devíamos ver, aceitar, a pedra – que pensávamos, antes, como coisa a ser ignorada por vergonhosa no heroísmo solitário, inglório, de ter de lutar com ela, chutá-la despedaçando o dedão, diariamente. Inutilmente.
O poeta só não disse como, exatamente, ela era, essa pedra.Como ele a via, a sua pedra pelo menos. Para nos dar mais conforto. Não – que comodismo, hein? Apenas nos disse: bem, ela está aí, a pedra, não há como negar, a pedra no caminho é parte integrante da condição humana. É a própria condição da humanidade. Disse, repetiu, “no meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho”, como se fosse apenas pedra à toa, arenosa, esfarelenta, areia na ampulheta (do Tempo?) vira prá cá vira pra lá tanto dá tanto faz. E se foi, acender seu cachimbo e ficar lá sentado – empedrado – no banco da orla, de costas para o mar (para não ver pedra tamanha logo ali plantada - Pão de Açúcar, chamada).
Que covardia, poeta.
E nós , como ficamos? Como viemos vindo vida afora imaginando tamanho peso cor e resistência da pedra drummoniana, da pedra consentida – ou pelo menos denunciada? Houve quem sacudisse os ombros: ora, quê pedra? Formação calcárea, com certeza. Friável. Não aguentará o primeiro aguaceiro do verão. Na presunção da juventude: a gente resolve, pode até tentar dissolvê-la entre os dedos, quer ver? Eu...E aí (agora confessamos) ficamos por muito tempo, anos, escondendo dedos escalavrados em luvas de precária utilidade. Guardando nas palmas o gosto perverso da pedra.
Ora, pedregulho com certeza. Calhau. Coisa de somenos. Chutado? – unha do dedão cindida ao meio, inflamada, purulenta, pela eternidade.
Questionado, o poeta deu seu sorrizinho de Gioconda e se refugiou em uma frase (sábia, convenhamos): “Uma pedra no meio do caminho/ ou apenas um rastro, não importa.”


14 setembro 2010

TEORIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA N'A HISTÓRIA SEM FIM", DE MICHAEL ENDE - PARTE II


ILUSTRAÇÃO: Por Alan Carline



TEORIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA...

Por Marco A. de Araújo Bueno

PARTE II (FINAL)

Ao contornar também o hedonismo festivo, proponho algo como um play-game. Tanto assim, que as regras da segmentação que passo a operar, criam a segmentação como um artefato, ligeiro como um caleidoscópio pode ser, se as mãos que o girarem forem ligeiras igualmente...
Tal segmentação vale-se de palavras chaves, apenas por seu caráter remissível, então:
I) Atreiú – As três portas mágicas;
II) O velho da montanha errante;
III) A casa dos loucos;
IV) A Dama Aiuola – A casa mutante – A mãe;
V) O pai – Caverna dos sonhos esquecidos e
VI) Volta para o mundo

Se pode ser surpreendente certa obediência à própria cronologia do texto (já que sugiro uma aproximação ao processo da psicanálise) chega a ser espartana a disciplina para não ceder à sedução da simbologia explícita.
A crítica, então, se infla de indolência. Por uma questão de tropismo, estaria até feliz em tender ao poema. Prefiro, no entanto, segurar-me no nível do “espinafre amarelo”, “salsicha escova” ou “pinta-pescoços” (p. 339- fala de Argax) por não dispor de centenas de milhares de anos. E só o tempo dá sentido a uma combinatória de significantes.

I – Pensem no processo de uma análise. Em que pese toda uma gama de motivações pessoais, há apenas uma entrada possível, quando se está captado no próprio jogo de imagens; capturado no narcisismo e apostando toda a verdade num ego que se acha fonte de significações. Não é à toa que se adoece nesse social, que é uma casa de espelhos cujo morador não mora lá.
Todo o esforço do analista é o de possibilitar, via “Atenção “Flutuante”, distraidamente, (já que o social é tão pregnante) uma certa transição- da esfera do pedido (dessa mímica social jubilatória que leva o analisando a identificar-se narcisicamente com o duplo de si mesmo, a uma miragem que lhe permita apenas reconhecê-lo) à esfera do desejo. É dessa alienação que se parte. É por um apelo que ela se dá.
Atreiú, o duplo de Bastian no mundo da fantasia, funciona como um guia a conduzi-lo para uma nomeação.
Ora, a nomeação funda a própria possibilidade do que Lacan chamou de Simbólico e o faz como a saída do Imaginário especular, narcísico; relação de presença. O símbolo que instaura a relação de ausência (já que é ‘presença da ausência da coisa’) da-se pela permissão de uma possibilidade de se nomear, agora sim, na esfera do desejo, do deslocamento, de metonímia.
Bastian precisará gritar:- “Filha da lua”! É a sua parte no acordo, já que inserido nesse inconsciente-tour intrigante; em alemão “Die Tochter von der Mund”. Teria escapado ao alemão Ende a homofonia Lua/Boca – Mund/Mond?
A saída desse imaginário é a palavra. A princípio pede-se ao analisando que apenas fale (já que se encontra captado em sua fala) e se o enxergará caminhando para uma palavra plena- “la parole pleine”, conforme Lacan.
Rompe-se o imaginário pela boca. Há uma rainha-criança (!) que compende toda a ordem (Simbólico) no mundo da fantasia. Bastian caminha, como numa análise, em busca de providenciar sua própria inserção nesta Ordem simbólica. D
Antes, porém, Bastian-Atreiú haverá de se confrontar com as esfinges, o espelho e a porta do silêncio Prova-certificado da saída do imaginário? A propósito Lacan afirma que não basta que o in-fans se veja “se”vendo no espelho, é preciso que ele se veja sendo visto pelo olhar comprobatório de um outro. Isto o retira da fragmentação do Imaginário.
Até então, Bastian-Atreiú se vê claramente subjugado à mãe (detentora do falo). O reencontro com o pai (cristalizado tal como se pode pensar de um significante primeiro) reporá o falo em seu devido lugar. Para chegar a essa substituição de significantes, para chegar a essa metáfora paterna que lhe permitirá, por fim, voltar ao mundo, Bastian deverá passar pela prova dos olhares das esfinges (... “E elas não vêm nada. Mas o olhar delas o tingiria da mesma maneira” (Enguivuck) - a prova do espelho (penetrar em si mesmo como na análise) e a última das portas, a que... “só aparece depois de se ter passado pela Segunda” (idem, p. 85). A passagem por esta porta esbarra no silêncio da fantasia (o analista comete silêncios significativos) que é para Enguivuck “absolutamente indestrutível”.
Se isso não lembra a recusa do analista em fazer concessões ao “pedido”, ao sintoma enquanto queixa, o trecho que se segue torna a analogia mais clara: “Quanto mais queremos entrar mais hermética se torna a porta. Mas se alguém conseguir se esquecer de todas as suas intenções [Ego, imaginário, ilusão do sujeito] e não quiser absolutamente nada (associar livremente idéias)... a porta se abrirá sozinha perante essa pessoa.”.
É claro que me recorda Nietzsche (o meu corpo-grande razão - tem idéias diferentes de mim), mas há de se reconhecer também certa esterilidade de algumas das aproximações aqui sugeridas. Daí, penso que seja infrutífero julgá-las dogmática ou canonicamente. Afinal, a “curiosidade puramente científica” de Enguivuck não o levou a conhecer Uiulala... Tentadora a aproximação entre o “diálogo” de Atreiú com Uiolala e a Teoria da Técnica psicanalítica no que diz respeito ao contato analítico (vide Freud, in” Conselho aos Médicos...”)
“Quem sou eu? Murmurou (Atreiú, que à pergunta “quem é você” recebeu um eco “quem é você”?). Um analista poderia dizer como Uiulala:
“Pois aquilo que não escuto em verso (relevo fônico do significante) entendo sempre de modo diverso (pregnância do social)”; ou, “Quem sabe é quem? Agora te entendo bem”. Uiulala, a voz do silêncio, continua como em um contrato analítico: -“Mesmo que não me vejas/ Ainda estarei lá”. Mostra ainda que é apenas um ponto na cadeia de significantes, um representante da ordem simbólica, um semblante, fazendo o gosto da rima: “... não sou visível na luz/ Como tu és ao te olharem (social) /Pois meu corpo é nota e tom/Por isso apenas audível/ E nesta voz tens o som “do meu único ser possível”.
Faz-se o convite ao simbólico: “Porém, se novo nome encontrarmos/ Seu mal será logo banido” (a relação dual, o imaginário na relação simbiótica com a mãe romper-se-ia e daria lugar à palavra). Lembra, também, a essência do processo:- “E tudo dependerá/ de seres capaz, ou não”; e, finalmente, propõe-se como ausência:- “Tal resposta a ti te cabe/meu dever é avisar/chegou a hora, já é tarde, já é tarde/ temos de nos separar”
Poder-se-ia também aproximar a concepção lacaniana de Tempo lógico, com a fala de Enguivuck (p. 104):
“O espaço e o tempo, disse Enguivuck, eram talvez diferentes no lugar onde você esteve...” O inconsciente desconhece tempo cronológico e categorias de negação!

II – O velho da montanha errante.
Nessa passagem, Bastian emerge aos limites do consciente, e mergulha na fantasia, como leitor e personagem, numa infinita cadeia de ler-se lendo. É o ponto de tensão maior, quando em ultima cartada desvenda-se o eterno retorno, o fim e o princípio que deixam de existir em pró do círculo: são as cobras se comendo que formam o Aurin. Voltando a questão da análise, refaz a vivência da compulsão da repetição, que traz sempre o presente resignificando o passado e lançando para o futuro o que se fez em passado. Isso engatilha a idéia de que os futuros vindouros serão apenas nostalgia de algo perdido. “Assim é que, na seqüência d’A História sem fim”, quanto mais Bastian “cumpre” seus desejos, mais seu passado é apagado e menos capaz de desejar ele se torna, ou seja, não há desejo sem memória: “a esperança é a saudade virada ao avesso.”

O paralelo traçado aqui entre o processo de análise e a trajetória de Bastian aponta necessariamente para uma diferença sutil: Bastian não inventa seu percurso, ele o recria e o refaz. A busca aparentemente eufórica no texto corresponde a um desejo de busca que perpassa o texto, refaz um percurso e ancora num significante.
No mundo da fantasia, portanto, não há lugar para o acaso, que só se dá na diacronia e no sintagma (vide Jakobson, um outro Roman... in “Lingüística e Comunicação”) e precisa do contrapondo da realidade para a concessão de toda a sua carga de “loucura” que dele deriva. Ou seja, ali onde os significantes podem dançar em entrechoques, atropelarem-se e saindo de cima voltarem por baixo (Banda de Moëbios) não há lugar para surpresas. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem:- “Ora, na realidade estamos à sua espera há muito mais de cem anos, respondeu a mulher. Já a minha mãe, e a minha avó, e a avó da minha avó esperaram por você. Veja bem... estou contando a você uma história que é nova e, no entanto, refere-se a tempos muito remotos”.
Enfim, é como se o passeio de Bastian fosse a hipérbole de um reconhecimento que, em dado contrato, corresponderia aos “insights” do analisante, rumo à idéia (“Angst”) de como a sua liberdade é algo muito mais restrito do que ele supunha. Só há liberdade, a propósito, dentro dos limites deste confinamento estrutural, lingüístico (vide “Cours de Lingüistic General” de Ferdinand Saussure), aliás!

III – Se a única possibilidade de liberdade radical reside na loucura (“na medida em que ela se instale no “reino da semelhança”, no “eixo paradigmático”, conforme explica Michel Foucault n’As Palavras e as Coisas”) e se nada ao acaso ocorre, Bastian tinha de se defrontar com o medo da insanidade, pelas mãos irônicas de Ajax. E aí que ele se encaminha para a “Cidade dos Antigos Imperadores”. Local reservado àqueles que, ao perderem totalmente sua memória, são desligados do “mundo” e tornam-se incapazes de “desejar”. Só se deseja aquilo que já se conhece. Apagar o passado é impossibilitar o futuro, e se perder no paradigma, que é a própria loucura. Para eles só resta brincar da paradigma (jogo de letras, o “estado de dicionário” a que aludia Drummond, a palavra “in absentia”) até que alguns sintagmas comecem a surgir, e quem sabe forme-se outro livro. Há sempre a alusão a princípios, nada é final absoluto.
A saúde mental de Bastian está no horror que a cidade dos loucos lhe causa. É só o seu pavor ao vazio que o breca em seu insano caminho pela fantasia. Restam-lhe apenas poucas lembranças, mas agora compreende sua peregrinação. Até então considerava-se o mais sábio da Fantasia, tanto que almejou o poder supremo pertencente a “ilha da Lua”. E torna-se, agora, o mais miserável na fantasia, pois busca algo que já não se recorda, e vislumbra, no futuro, o desvario. Tal como Édipo, cujo drama, bastante próximo, se desenrola todo no decurso de apenas um dia.

IV – Todo o percurso na análise não passa de uma revisitação, via transferência, às figuras parentais, arcaicas. Se, pelo início dessa reflexão, falou-se de imaginário e simbólico, nessa ordem, é porque a primeira tarefa existencial é alienar-se num desejo de um outro materno. É enquanto a criança almeja tornar-se objeto de prazer e gratificação de uma mãe, marcada pela carência do “falus” (“penis-neid”, para Freud) que se pode pensar no registro do imaginário: a criança vive simbiótica e indiscriminadamente, o drama de submeter-se à mãe como representação do falus que lhe falta. É exatamente o que Bastian, num primeiro momento, vivencia: Veja-se o diálogo sobre a questão das frutas: -“Não sei, disse Bastian perplexo. Não se podem comer coisas que crescem em outra pessoa. Por que não? Perguntou a Dama Aiuola. Os bebes também mamam o leite de suas mães. É uma coisa muito bonita./ pois é, interrompeu Bastian, corando um pouco, mas só enquanto são muito pequenos./ Então, disse Dama Aiuola radiante, você precisa se tornar outra vez pequenino, meu lindo menino”. Toda essa dinâmica tem início em uma separação: a mãe vê separar-se de seu útero a criança. O útero “é maior por dentro do que por fora” (p. 356), como a casa mutante do livro de Ende.
A Dama Aiuola é a imagem da sedução que se constituiu para o intrigado Bastian na idéia de uma mulher gerando frutos de seu corpo inesgotavelmente. É a própria captação no “Éden” do Imaginário. No entanto, na dinâmica do Édipo está implícita a idéia de que só se pode sair do narcisismo, do erotismo simbiótico e dual, enfim, só se consegue amar (no sentido de investimentos objetais) quando se rompe o idílio do imaginário com o estabelecimento de uma triangulação. Deverá haver um terceiro social a mostrar à criança que ela poderá ter o falus e o amor se renunciar a ser o falus materno, e sucumbir às instâncias pré-simbólicas. Novamente há o paralelo com o caminho de Bastian que, ao sentir necessidade do amor, está pronto para quebrar o idílio da casa mutante e partir em busca das águas da vida.
Bastian descobre seu último desejo: amar. Para isso deve se encaminhar para a Fonte da Vida:- “Só poderá fazê-lo quando tiver bebido das Águas da Vida, respondeu ela, e não pode voltar ao seu mundo sem levar dessa a outro” (fecha-se outro círculo). Bastian deverá separar-se de Dama Aiuola:- “Só preciso de alguém a quem possa dar o que tenho a mais”’, ela lhe diz, quando a mensagem poderia ser: “a minha carência constitui você como objeto da minha falta, daquilo que tenho a menos”.

V – É preciso que se escave fundo no terreno das fantasias para que se chegue ao que Lacan chamou de “point de capiton”. Lá, onde se ancora o significante primeiro, o significante “Nome do pai” (“Le nom du pére”). Bastian deverá descer mina onde jazem os sonhos esquecidos- substrato da fantasia- para alcançar esse Pai que é possibilidade de nomeação. Tendo, portanto, contornado a psicose (é por não ter “foracluído” tal significante que seu retorno é bem sucedido) e emergido do imaginário, que Bastian descobre esse rosto triste de pai cristalizado na placa de mica. As últimas linhas do livro dão conta do retorno de Bastian à realidade e da presença de um pai que também precisou ser redescoberto e que, por fim, lhe concede e lhe permite a possibilidade de autonomia: agora Bastian pode se autonomear e nomear sua própria falta, última etapa de uma análise. Bastian é, então, essa espécie de pervertido, porquanto a sua viagem toda não tenha passado de uma versão da fantasia em direção ao simbólico. De uma versão para o pai. De uma “pére version”.

-“Há muitas portas para a fantasia meu rapaz. Há muitos outros livros mágicos. Muitas pessoas nunca percebem isso. Tudo da pessoa em cujas mãos o livro vai parar”.
Há pelo menos uma razão plausível para se falar em fantasia: a de refazer um percurso de concavidade. Pensar, nessa palavra é quase tocá-la... tocar o côncavo, sensual e distraidamente- eis um exercício de puro Princípio do Prazer...



                                                    Rubem Alves - Filosofia da Linguagem
                                                        ensaio de final de curso













13 setembro 2010

Short Story #03

por Rafael Noris

Lucinha me olhava. Tinha as pernas finas e as mãos, delicadas. Parecia-se com a boneca que carregava. À noite, seus pais sairiam:

- Posso tomar conta dela, assim ela brinca com minha filha.

Brincou. Mas às 21h53 mandei a minha dormir. Era a noite da Lucinha. E depois dela, Lucinha nunca mais me olhou.

12 setembro 2010

TEORIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA N'A HISTÓRIA SEM FIM", DE MICHAEL ENDE - PARTE I


ILUSTRAÇÃO - Por Alan Carline

TEORIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA NA ‘HISTÓRIA SEM FIM’, DE MICHAEL ENDE

Por Marco A. de Araújo Bueno

PARTE I

Há pelo menos uma razão plausível para se falar em fantasia: a de refazer um percurso de concavidade. Pensar, aliás, nessa palavra é quase poder tocá-la... Tocar o côncavo, sensual e distraidamente, eis um exercício de puro Princípio do Prazer.
Há o contato com o próprio livro, contato materialmente erótico, de cheiro de gráfica, de cores discretas e saborosas, de barulhinhos e sonzinhos da primeira cartilha, da infância. O livro vem de dentro do livro (“... ele agora está nas suas mãos...”) e o côncavo se oferece como um figo recém abocanhado. Suculento como um figo, misterioso como uma caverna.
O livro é um brinquedo novo e ocupa muito pouco espaço: ele ocupa o seu próprio espaço de dentro!
Côncavo, caverna, dentro, figo mordido... Há também uma razão mais antipática para se propor uma quebra de encanto, uma “lize” do erótico. Trata-se, é claro, de uma razão acadêmica, exorcisante de prazer, que só faz restaurar o convexo. Puro Princípio de Realidade.
Assim, se a Psicanálise que Lacan reescreve, preciosista, barroco, passa como um feixe intrincado de conceitos complexos (se isso é, por certo, quase que metodológico nele), se o “lacanês” é pedante e chato e auto-centrado e delirantemente complicado, isso só acontece porque há um caso de amor. Não se deixa um objeto de amor em mãos inábeis, sob os olhares pervertidos de uma psicologiazinha do ego norte- americana, sob os carinhos grosseiros de um adaptacionismo pragmático e imbecilizante, no colo da mais ingênua “ilusão” do sujeito.
Não é complicado achar em Lacan a assunção de uma hábil e estratégica forma de sedução. A palavra freudiana o toca como uma flauta mágica. Ele não apenas escuta as notas, ele as nota deslizando... metonimizando-se. Entra floresta adentro na melodia, sabe-se perdido e torna-se perdinte instituindo a “beance”, a falta- carbono da palavra. Ele acredita nessa mística xamânica da palavra, e é pela palavra que nós nos perdemos nele.
Eu o reencontro nesse livro, um livro roubado (“... La Letre Voullé” de Poe), uma história sem fim, como a figura de um pai cristalizado em um subterrâneo dos sonhos esquecidos (o significante primeiro, inadmitido à consciência?), de esfinges que compendem toda a sabedoria e paralisam... pelo olhar.
Como a partir de uma igrejinha dogmática só se avista discursos confirmatórios, os discursos confirmatórios de Lacan estão aí para mostrar que, pior que o puxa-saquismo da ortodoxia, é a chatice da ortodoxia do puxa-saquismo, o que o próprio Lacan já denunciava como o “não estilo”.
O próximo passo poderia ser justificar as justificativas introdutórias. Prefiro, no entanto, sair pelo livro adentro para tentar sugerir uma semelhança: a que se insinua entre o texto (apesar das sinalizações de trânsito que, por questão talvez de segurança, alternam cores de impressão para legitimar ou não a entrada pela fantasia que, afinal, só tem sentido, se for a “minha fantasia”) e o percurso do sujeito no processo da análise.
A análise também tem sua concavidade. Não se pode usá-la a torto e a direito. Uma espécie de imanência. Entra-se numa análise pelo meio e começa-se pelo lado de dentro. Um exemplo de abuso dos recursos e instrumentos da análise, no caso, poder-se-ia se ilustrar com uma inquietação, meio anedótica, meio “lingüistérica”: Por que razões (o inconsciente é feito de palavras) alguém chamado Michael Ende (... Das Ende?!) se põe a escrever uma história sem fim? Algo mais sério poderia ser: porque sinalizar os caminhos em um texto mais próximo a uma Banda de Moëbios, sem lado de dentro, sem lado de fora, sem direito e sem avesso, como o próprio inconsciente em seu estado de sótão (tão só) onde Bastian lê o livro, em seus estado de discurso, de texto?
Tenho a intenção de propor aqui algo menos lúdico que esse patinar por livre- associações. Dentre as quatro consagradas modalidades de crítica psicanalítica ( voltar-se para o autor como na “Gradiva” de Jensen; para o leitor; para o conteúdo ou para a construção formal do texto) escolho a segunda, até para privilegiar ramificações intertextuais. Não perderia o lúdico de vista. A propósito desta visada, é bom que se lembre- Kafka disse algo como (...) um texto deveria chegar ao leitor como a notícia de morte de um ente querido...
A leitura desse texto provocou-me certos lutos e algumas escotomizações, uma das quais insejou-me declinar de categorias tomadas às sociologias e às histórias, tão diacrônicas.
Se cada leitura é uma re-escritura, essa minha reflexão sobre o texto do alemão Ende, há de desejar, em fim, uma certa univocidade, um tanto singular; de espelhos, um silêncio potencializado, quem sabe.
Interessante- a linguagem de Ende é absolutamente pictórica e em “Signes”, Merleau-Ponty conclui: “... As vozes da pintura são as vozes do silêncio...”. Também há um pouco do Borges de “O JARDIM dos Caminhos que se Bifurcam”; intertexto do lado íntimo, côncavo da obra- personagens que se citam de livro para livro do autor. Importa começar pelo meio e entrar pelo lado de dentro. A costura é costura de significantes e o bordado mora no seu avesso.
Bárbara O’Brian escreve também sobre uma viagem psicótica solitária e sobre o caminho de volta. Puseram o livro sob suspeita, afinal, ela ousou voltar e escrevê-lo, algo impensável para uma “esquisofrênica”. Em “Operators and Things”, Bárbara está numa estação de ônibus. As vozes (operadores, entidades persecutórias que desenham uma “grade” em seu cérebro e o manipulam como “coisa”, como nos “milagres” do presidente Schreber) ordenam-lhe que retire sua carteira de identidade da bolsa e a rasgue. Nesse momento, tudo fica escuro e o chão da estação ergue-se em direção a seu rosto. Bárbara passa seis meses viajando de ônibus pelos EUA e, já no final do “raptus” psicótico, sente que pode escrever à máquina sobre sua experiência... “É como se um pouco de praia seca voltasse após um tenebroso período de maré cheia...”
O cartunista de humor negro- Roland Topor- termina seu livro “O Inquilino” operando em seu personagem um duplo salto suicida da janela do prédio. Primeiro como seu duplo (a fantasia- Simone) e depois, alquebrado e sangrando por todo o corpo, como o próprio personagem (representado por Roman Polanski). Algo como não poder morrer por consignação; é preciso voltar da fantasia, nem que seja só para morrer.
Por aí se vê que as associações estão bastante livres e se retomo o indigesto Lacan é por estar intrigado com algumas contingências evocadas pela obra dele. Uma escritora como Hilda Hilst, para quem Deus é “... uma superfície de gelo ancorada no riso...” (segundo uma equação a que chegou um de seus personagens, Amós Keres, matemático) alguém assim, para quem toda a questão é uma questão de religiosidade (a da “Obscena Senhora D”, por exemplo) alguém que sofre as agruras de ver seu texto tido e havido como uma espécie de “tábua etrusca” (sic), tem verdadeira ojeriza ao tom frio, quase que maoísta de Lacan.
Pensando assim, que, de um Lacan autodificultado, não se tira frutos. É uma árvore seca que acaba por esterilizar as livre- associações. Haveria de se tornar, aqui, enquanto instrumento, apenas um breve artesanato de metonímias pluralizáveis, circulares e compulsivas, sem fim? Eis, então, uma história sem final pelos caminhos de uma crítica sem finalidade. História e crítica sem fim.

11 setembro 2010

TE PEGO ALÉM DO ÚLTIMO HOMEM

Te pego lá fora, Three O'Clock High, é um clássico dos anos 80 do diretor Phil Joanou sobre a jornada de um homem para a iluminação, uma jornada quebrando os limites de sua realidade, quebrando os limites do papel ao qual se encontra, uma ruptura lhe forçada pela mão de um sábio inesperado. Em suma é o último filme, um filme que revela todos os segredos da vida e acaba a necessidade do cinema.

 Uma batida de relógio de corda a soar acompanhando um relógio eletrônico, o tempo a sempre delimitar a vida e as decisões. Somos apresentados a Jerry Mitchell, um jovem pacato, de uma escola pacata. Acorda atrasado, começa desesperado o padrão, o ritual, a programação de início do seu dia determinado. Quarto bagunçado, ordem da desordem. Pacato, mas balançando na corda entre o homem e o último homem, quebrando os padrões do ritual do status-quo: aquece suas roupas no microondas, tira a pasta de dente da boca com coca-cola, atravessa os carros no seu caminho sem se importar. 

Entra Buddy Revell, o estrangeiro, o invasor do status-quo. Quem é Buddy? É um homem que não gosta de ser tocado por homens comuns, que se isolada de uma sociedade que só faz por devorar, que se isola para ler, para expandir seus conhecimentos. É um guru iluminado vagando pelo espaço e às vezes encontrando outros indivíduos que talvez com a sua ajuda possam atingir a mesma iluminação. Jerry já estava no caminho para algo mais, mas estar no caminho não é necessariamente atravessá-lo, poderia viver eternamente na sua posição. A perturbação da presença de Buddy no espaço foi todo o necessário para Jerry ser tragado até ele. E nessa interação, Buddy o testou, passo à passo, para ver se Jerry tinha todo o necessário para se tornar também um ser iluminado.


08 setembro 2010

COLUNA BREVIDEIAS - ENSAIOS DE CHALEIRA


PRIMEIRO ENSAIO DA COLUNA BREVIDEIAS: A HISTÓRIA SEM FIM (Michael Ende)





Desde o encerramento da coluna FRAGMENTÁLIA o De Chaleira

ressente-se de uma lacuna : Há

um espaço teórico a ser ocupado,

seja na literatura, nas invenções

pictóricas, musicais ou cinélilas.


Pois bem, a partir do espaço que

nos concedem Eustáquio Gomes,

na coluna CRONOS de hoje, e a

Cássia Janeiro (em sua dominical)

que revezava com a PROLEGÓMENOS:


BREVIDEIAS


ENSAIO SOBRE A FICÇÃO DE Ende


[Estreia neste domingo, dia 11 e fecha

em minha coluna BREVIDADES, dia 14)


{ASSISTA O LIVRO OU LEIA O FILME}





07 setembro 2010

CERTAS ALEGRIAS

CERTAS ALEGRIAS

Por Bia Pupin

Renata em um passeio pelo shopping em busca de um sapato. Encontrou um lindo na vitrine. Dias de promoção 50% de desconto, um número menor que o seu, comprou.
A vendedora ofereceu mais um e outro. Ela levou o vermelho. Quando tranquilamente provou em casa, sem a pressão da vendedora devidamente treinada para isso, percebeu o evidente, ele a incomodava.
Sucumbiu na tentação masoquista.
O esquema das férias de Renata foi de tédio, espera e decepção.
Sabia o que iria encontrar em casa, um vago mau humor na tentativa de se entreter com algo.
Quanto custa ser feliz? Perguntou-se Renata. E quanto dói não conseguir...
Nada mais fácil do que ficar em casa esperar Otavio, que sem nenhuma pressa volta do trabalho, mesmo sem um presente, sem agrados, por mais que ela negue, havia certa apreensão e um suspiro - hoje ( ainda! ) alguma coisa poderá mudar.
Disso tudo, ela tirou uma alegria masoquista, quando vestiu sua camisola.

06 setembro 2010

ÚBERES



Uma rubrica rasa
na escrita.
Rota, frouxa, murcha.

Rosto suspeito
e as tetas,
de fora,
balançam,
pingando leite.

Pó, aos pós-modernos
solúveis em água.
Às mamas sensíveis,
a saliva agride.

Uma rústica raça agreste.

.

05 setembro 2010

O SEU LADO DA CAMA

O SEU LADO DA CAMA

Por Cássia Janeiro


O seu lado da cama ainda está quente.


Permanece o seu cheiro adormecido


Nas entranhas do cobertor,


Qual uma pequena brasa


De amor contido.



Não sei se tentei tudo o que podia,


Mas era o que podia.



Eu ainda o procuro



Como se fosse um pássaro


Na imensidão da minha floresta.



Eu ainda o procuro

Dentro de mim

04 setembro 2010

SENÕES


Se for pra sumir, eu assumo
Se for pra descer, eu descendo
Se for pra crescer, eu acrescento
Se for pra sonhar, eu assombro
Se for pra compor, eu acompanho
Se for pra mentir, eu faminto

Se for pra sair, eu me mando
Se for pra ficar, eu me finco
Se for pra alegrar, eu me manco
Se for pra temer, eu me meto
Se for pra parir, eu me parto
Se for pra calor, eu me ardo

Se não for, nem vou
Se não dor, nem sou
Se não mar, nem nado
Se não vago, nem ando
Se não calo, nem ouço
Se não bebo, nem danço

Se nem amar, não vivo
Se nem sonhar, não canto
Se nem quiser, não dou
Se nem mulher, não marcho
Se nem casar, não ligo
Se nem bater, não revido

02 setembro 2010

Soneto L

Somos o que sabemos, não o que temos.

Por Marcelo Finholdt

Vem o homem convicto a ganhar e nos diz:
- Qual é mesmo teu nome? Ah, me diga quem és.
Não me venhas dizer que és mais um dos Josés,
Ou então pobre ser sem sequer diretriz!

- Fale logo se tens muitas posses, matriz,
Qual é teu sobrenome, o que tens sob os pés?
Não me diga que tens toda a vida ao revés,
Ou então que és um ser sem nenhum chamariz.

Vem o homem convicto a ganhar e nos fala:
- Com quem andas ou vais? Qual é então teu destino?
Falo agora contigo, ou com algo que cala?

Nada tens para ser assim tão cristalino,
Reluzente a sorrir, mesmo aqui nesta vala,
Nada fala e nem só me revela o divino.

01 setembro 2010

FIOS EMARANHADOS


FIOS EMARANHADOS

Por Cecília Prada

"O que a gente tem de aprender é, a cada instante, afinar-se como uma linhazinha, para caber de passar no furo de agulha, que cada momento exige".
Guimarães Rosa

“Meu enleio vem de que um tapete é feito de
tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só :
meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas
histórias”.
Clarice Lispector





Hoje quero escrever – sendo sábado, dia de divagações e permissividades - uma coisa assim, de fios . Dos fios detectados, dos que nos sustentam. Fantoches somos na mão invisível de alguém que nos manipula? Ou, simplesmente, falar dos múltiplos fios em que estamos todos enrolados, na imensa rede que não foi inventada pela indústria da comunicação virtual, como se poderia pensar numa simplificação – mas na enorme rede da vida. Pior: do cosmo. E que nós, pobres fiozinhos atormentados e complicados no nosso emaranhamento, temos a pretensão de querer entender, desenrolar. Enfim – ridículas formiguinhas.
Anos atrás inventei a pretensão de contar minha vida, para entendê-la um pouco. Se fracassei quanto ao livro pronto, amontoei quilômetros de entulho literário feito de coisas e loisas, e amores e desamores, e desesperos e retemperos, material que está todo por aí, pelas gavetas dos móveis, do micro, do Ser – um dia será amarrado em pacote, espero, e definitivamente selado e entregue.
Enquanto isso, indago consistente: que fio afinal usarei para amarrar esse pacote de mim? Que fios usarei para bordar a eterna tapeçaria que nós mulheres tecemos (desde aquela nossa protoavó Penélope) para deixar em legado à família ? - para que em mim não se cumpra o destino das mulheres silenciadas, tias-avós de diários bolorentos jogados fora pelo primeiro sobrinho aparecido após o enterro, versos escritos com aplicada letra de curso primário, indefectíveis rosas secas dentro de um livro esmaecido, e os murmúrios, e os lamentos que ressoam em todos os haréns, em todas as salas de todas as famílias.
Ou simplesmente morrerei de boca costurada, como foi durante tanto tempo o destino das mães e avós loucas?
*
Mas não é fácil contar esta história um tanto estranha, feita de tantos pedaços, te confesso. Não é fácil costurar seus elementos – que linha usarei, pois?
A linha da mediocridade, comprada na feira, parda e resistente, que minha avó italiana usava para cerzir eternamente, num ovo de madeira,as meias da família? Minha avó que nunca falava, que morreu silenciosamente aos 97 anos, doce e apagada velhinha de cabelos de algodão e olhos azuis.
A linha triste e discreta com que me costuravam os botões do uniforme azul-marinho do externato de freiras? Ou talvez eu deva escolher, por que não? algum dos fios mais brilhantes que me foram concedidos pela vida, tons rosa-salmão do meu primeiro vestido de baile? Ou o fio de cetim imaculado do vestido de noiva? Ricas nuanças de tapeçarias medievais? (não fui por acaso castelã e prisioneira?) Ou espargir pelo meu livro as cores, nunca reveladas, daquela imensa, interminável, milenar tapeçaria que nossa protoavó Penélope desdobrou sobre toda a humanidade?
– e cujo risco ninguém, nunca, se preocupou em saber qual era...
Não. Já sei. Usarei, para tão digno bordado, aquele fio de seda mista que as freiras já no primeiro ano primário queriam nos obrigar a usar, com paciência nos adequando para as exigências da vida: enfiar, e enfiar de novo, e mais uma vez, e sempre, uma linha enfezada e resistente na agulha fina de buraco que se esquivava manhoso em um trabalho de amostras de pontos de bordado, um paninho de linho branco que se queria - como tudo para nós - puro, imaculado. E que só eu, a menina má, amarfanhava num canto da pasta, retirando-o de má vontade, medrosa, na hora de trabalhos manuais. E minha linha, só a minha, parecia se obstinar em criar nós e complicações.
(Como estas urdidas - ardidas? - memórias de hoje.)
Irmã Louise, vermelhona, de pelos no rosto, me dizendo, vidente, talvez:
- Mas isto não é um mostruário.É um monstruário.
Teria ela realmente seus dons? Veria já no paninho encardido, sujo de tinta, vergonhoso, de linhas emaranhadas, alguns dos lagartos, das serpentes, das complicações existenciais em que eu me veria mais tarde colhida?
Segredo: ah, no meio do pano encardido bordei uma tosca florzinha inventada, com linhas gloriosamente espalhafatosas, azul-real, verde-pavão, vermelho-sangue. Depois disse para a freira que tinha perdido meu pano de amostras – que me dessem outro, talvez tenham me dado, nem me lembro o que aconteceu com ele. Mas a aprendiz de bordadeira seguiu e segue vida afora emaranhada na teimosia de tantos nós, tantas linhas enfezadas alinhavando pontos impossíveis -tentando lembrar qual era aquela flor inventada com todos os tons brilhantes da esperança, um dia.

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