02 junho 2010

POESIA, DIGAMOS - VERSO E REVERSO

POESIA, DIGAMOS – VERSO E REVERSO

Por Cecília Prada

Quanto a mim, sou escriba, apenas.
Vou mastigando, nesta idade,
memórias de sombras várias
- umas, nítidas, imponentes,
outras vagas, entrevistas
- no espelho de um Tempo
que, sem ter sido meu,
em mim (ossos-cartilagens-anseios e suspiros)
- persiste.

O Tempo não tem só ossos
- tem cartilagens (doridas) também.
Poeta é o que extrai o suco:
da palavra, das coisas, da vida.

O bom prosador, também. É preciso escoimar - palavras, coisas, personagens, espinhos e vivências - do seu bagaço, para se poder escrever bem. Mas que nos seja permitido preservar rascunhos – prova de nossa imperfeição. Guardá-los como frutas cristalizadas que daremos aos netos bisnetos sobrinhos-tortos que porventura queiram continuar um dia a tradição literária. Para que os desembrulhem encantados em dia de Páscoa, na véspera do Natal, no primeiro ano da faculdade – ou simplesmente em algum domingo de chuva. E se consolem, ou mesmo se deliciem, com os tropeços desta avó que queria escrever. E que aprendam, com tal legado, a aceitar a incompletude, o efêmero – e o Tempo sem pressa.

O Tempo sem pressa.
Só o tempo possível.
E com essa pauta escrevam
- o avesso da vida e das pessoas.

Aceitação do avesso – sem ele, não há bordado. Mas da fragilidade da menininha impúbere exigiam mães e mestras de cara enfarruscada que ele, o avesso do bordado e da vida, fosse tão perfeito e bonito de se ver como o direito – perversão feminina.

O passado é meu material
- uma história que se conta, é sempre passada.
A inquietação é o meu estímulo,
O descontentamento, minha ferramenta
- com a qual vou retorcendo
os rebites dos personagens.

“Eu sou uma pergunta”, dizia Clarice. O filósofo também sempre se disse assim, votado à dúvida metódica. Que, se for expressa, como a inquietação do escritor, em um pacato almoço de domingo com a família, incomoda. Porque desligada do contexto permitido pelas convenções: a mesa de trabalho, o livro, o artigo na revista acadêmica – escrito ou por escrever - e despejada, essa inquietação mal comportada, pouco lavada, míope e serelepe, na mesa da comunhão tribal.

4 comentários:

Anônimo disse...

Ótima estreia. Esperamos mais textos de alto nível como esse. Grande abraço, Cecília.

Ubi Pater Sum, Ibi Patria disse...

Prezada Sra. Prada,

Sê bemvinda!! Queira aceitar os cumprimentos e a humilde acolhida de quantos orgulham-se, já, de a ter condiscípula neste cenáculo.

Macte!!

Guilherme Salla disse...

Viva, Cecília!

Que a letra ancestral nos irmane e que o tempo pare de devorar seus filhos no café da manhã, enquanto a lemos!

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Impecável diplomacia (ela é diplomata) na resposta da escritora (ela é escritora) Cecília Prada aos colunistas e anônimos que a saudaram, pela ocasião da estréia de sua coluna aqui - (...)"Cecilia agradece a acolhida calorosa - excelente no inverno! - dos irmãos literários, que logo terão mais palavras (muitas) de sua lavra..."
E se pergunta sobre o misterioso Ubi Pater Sum. Cara, este é o nome do blogue do nosso colunista Wagner de Souza, assim batizado pela túrgida homenagem ao Caio, filho dele. Quanto a mim, você bem o sabe, - "nice", diria da Prdaria Literária.

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